Da dominação ideológica (linguística) à problemática dos graus transitórios – Parte II/II

A rutura revolucionária (quando uma classe antes dominada passa a exercer o controlo e domínio do órgão político, antes sob o domínio da classe sua antagonista) necessária para finalizar a exploração que (com a exceção do comunismo primitivo) sempre acompanhou a história de toda e qualquer sociedade, passa por um grau transitório fundamental: o grau transitório entre o Estado, órgão de dominação da classe dos capitalistas, e o Estado, órgão de dominação do proletariado, é precisamente a revolução, que consiste em derrubar a burguesia e quebrar, destruir a sua máquina de Estado. Que a ditadura da burguesia deve ser substituída pela ditadura de uma classe, do proletariado, que aos «graus transitórios» da revolução se seguirão os «graus transitórios» da extinção gradual do Estado proletário (Lenine, 1918, A Revolução proletária e o Renegado Kautsky).

Na luta pela superação revolucionária do capitalismo, é, assim, premente ter constantemente presente uma característica fundamental do órgão político de sustentação de uma classe dominante (o qual subjaz a qualquer organização socioeconómica – com a exceção do comunismo primitivo), a natureza de classe de um Estado: como o Estado é a forma em que os indivíduos de uma classe dominante fazem valer os seus interesses comuns e se condensa toda a sociedade civil de uma época, segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo Estado, adquirem uma forma política. Daí a ilusão de que a lei assentaria na vontade, e para mais na vontade dissociada da sua base real, na vontade livre. Do mesmo modo o direito é, por seu turno, reduzido à lei (K. Marx e F. Engels, A Ideologia Alemã, 1845).

Nos diferentes modos de produção que a humanidade conheceu, o Estado sempre teve, aliás, um papel histórico e um significado precisos, sendo quer o fruto do inconciliável antagonismo entre as classes quer a prova que as contradições de classe são inconciliáveis (Lenine, 1917, O Estado e a Revolução).

A compreensão do que é a natureza de classe de um Estado é, desta forma, um ponto fundamental para preparar táticas e estratégias que nos permitam construir um Estado dominado pela grande maioria, hoje dominada.

O debate sobre etapas e graus transitórios inclui, ainda, um outro elemento: a transição revolucionária far-se-á pela via pacífica e, portanto, institucional ou pela via revolucionária – que terá, necessariamente, de combinar formas não institucionais e violentas de luta? A esta discussão, tampouco escapou o PCP.

Relembremos, a este propósito, o documento publicado em Abril de 1961, no Militante, sob o título O desvio de direita no Partido Comunista Português nos anos 1956-1959 e aprovado pelo Comité Central do PCP. Segundo a análise então realizada, considerou-se ter havido um desvio de direita na Direção do Partido entre 1956 e 1959.

Aí se assinala (ponto 2) que a solução pacífica para o derrubamento da ditadura fascista (…) constituiu um desvio oportunista de direita de que tem enfermado toda a orientação do Partido. Baseada numa falsa correlação da estimação de forças no plano nacional, no menosprezo da natureza e força do estado fascista, na valorização do papel das condições objetivas e na subestimação da decisiva importância das condições subjetivas (de organização e outras), a apresentação da via pacífica, não como mera possibilidade ou aspiração, mas como a via provável e viável para derrubar a ditadura salazarista, teve uma influência nociva no desenvolvimento geral do movimento democrático e no desenvolvimento da ação e organização do Partido.

Pretendemos, desta forma, relembrar que a autocrítica e análise da situação concreta do Partido entre 1956 e 1959, nomeadamente a partir do V Congresso (1957), fez com que, em 1961, o CC considerasse que as linhas de ação e de reflexão política estabelecidas pela Direção do Partido nesse período impediram que (ponto 8) se educassem as massas na ideia do levantamento nacional e do assalto ao poder, quebraram o ímpeto combativo e disposição de luta das massas populares e levaram o Partido, a classe operária e as massas a uma posição de expectativa (sic) e desorientação.

O exercício da autocrítica permitiu ao PCP retificar um desvio. Foi, contudo, este mesmo desvio que foi assimilado por outros partidos europeus, os quais, considerando a possibilidade de uma transição pacífica para o socialismo, o integraram nas suas conceções eurocomunistas, defensoras de etapas intermédias, dentro de um mesmo modo de produção, nas quais se incluíam as referidas democracias progressivas ou avançadas.

Assim sendo, a discussão sobre as etapas e graus transitórios é fundamental para a compreensão do que foi o eurocomunismo e as suas nefastas consequências para o movimento comunista internacional. Nesta reflexão, o estudo e compreensão das categorias da filosofia e da economia política marxistas-leninistas, nomeadamente a categoria de Estado e sua leitura à luz da luta de classes, são imprescindíveis.

A Revolução de Abril de 1974 e a contra-revolução de Novembro de 1975: da confusão entre etapas e graus transitórios

No dia 25 de Abril de 1974, o levantamento militar e o levantamento popular que se seguiu criaram uma situação revolucionária. Esta situação revolucionária permitiu que se iniciasse um processo revolucionário que, a 25 de Novembro de 1975, foi travado por uma contrarrevolução. Esta contrarrevolução, ainda hoje em curso, permitiu o aprofundamento do capitalismo monopolista e da financeirização da economia.

A contra-revolução não permitiu, desta forma, que se dessem os diferentes graus transitórios necessários para a consolidação de um estado socialista ou seja, a tomada do poder pelos trabalhadores. Assim, a ditadura da burguesia volta a reafirmar-se, desta feita não sob uma forma fascista, mas – tendo em conta a correlação de forças de então (na qual o trabalho ganhara terreno face ao capital) sob a forma clássica designada de democracia burguesa.

Quando, em 17 de Abril de 1917, Lenine afirma que A peculiaridade do momento atual na Rússia consiste na transição da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia por faltar ao proletariado o grau necessário de consciência e organização, para a sua segunda etapa, que deve colocar o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres do campesinato (1917, Teses de Abril), a primeira etapa, a revolução democrático-burguesa, constituiu uma mera estratégia política com vista à criação de uma situação revolucionária que permitisse a transição para o socialismo.

A necessidade desta primeira etapa revelou, apesar disso, as suas contradições e limites. Assim, ainda em Setembro do mesmo ano, é o próprio Lenine quem declara o fracasso dessa primeira etapa, clamando a necessidade de uma revolução em que o poder do Estado esteja nas mãos de um governo revolucionário, democrático e popular, assente na vontade de uma maioria de operários e camponeses: Não é possível eludir nem afastar a questão do poder, pois esta é precisamente a questão fundamental que determina tudo no desenvolvimento da revolução, na sua política interna e externa. Que a nossa revolução tenha «perdido em vão» meio ano em vacilações em relação à organização do poder, isto é um facto indiscutível, é um facto determinado pela política vacilante dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques. E a política destes partidos foi determinada, em última instância, pela posição de classe da pequena burguesia, pela sua instabilidade económica na luta entre o capital e o trabalho. Toda a questão está agora em saber se a democracia pequeno-burguesa aprendeu ou não alguma coisa neste grande meio ano, excecionalmente rico de conteúdo. Se não, então a revolução está perdida e só uma insurreição vitoriosa do proletariado poderá salvá-la (Lenine, 1917, Uma das Questões Fundamentais da revolução).

Em Portugal, a 5 de Outubro de 1910, deu-se uma revolução democrático-burguesa. A burguesia consolida, então, o seu poder e domínio; este domínio impõe-se, gradualmente, destruindo, no essencial, as relações feudais. É, contudo, 16 anos mais tarde, que esse poder e domínio se aprofundam, efetivando-se através do terrorismo de Estado, aliado à grande burguesia (sobretudo, latifundiária). A resposta revolucionária a esse domínio da grande burguesia nacional (em profunda aliança com a oligarquia estrangeira) verificou-se a 25 de Abril de 1974, quando uma Revolução Democrática e Nacional se opõe ao domínio político e económico da classe dominante portuguesa.

O levantamento militar e, depois, o levantamento popular (a conjunção de ambos permitiu a eclosão de uma Revolução) criaram, contudo, uma situação revolucionária que, indo além dos pressupostos iniciais que haviam guiado os capitães no levantamento militar, criou como horizonte a possibilidade de criação de um novo modo de produção (o socialismo), que se propunha como alternativa à ditadura fascista da grande burguesia dos últimos 48 anos. Tratou-se, pois, já não de uma simples revolução democrático-burguesa – e, portanto, de uma etapa (como Lenine a define nas suas Teses de Abril de 1917) que poderia proporcionar novos caminhos para a efetivação de uma revolução socialista -, mas antes de um processo revolucionário que, criando uma situação revolucionária, pretendia implementar uma nova ordem socioeconómica.

Esta situação revolucionária permitiu avanços e progressos; contudo, a tentativa de transição para o socialismo foi travada com o advento da contrarrevolução. Desde então, os progressos e avanços conquistados, quer no período revolucionário, quer no período contrarrevolucionário que imediatamente se seguiu à Revolução, foram alvo de fortes ataques.

Coloca-se, desta forma, na ordem do dia, a necessária transformação revolucionária do sistema atual para a sua efetiva superação.

Assim, se até 24 de Abril de 1974 nos encontrávamos em plena ditadura fascista, hoje em dia encontramo-nos quer perante um processo contrarrevolucionário, que se iniciou com o golpe reacionário de 25 de Novembro de 1975, quer num estádio mais avançado de desenvolvimento do capitalismo monopolista.

Como revolucionários, não poderemos, neste contexto, ter dúvidas quanto ao caminho a ser seguido: superar o modo de produção capitalista (e as suas consequentes relações de produção) mediante a concretização da ditadura do proletariado, ou seja, da organização de vanguarda dos oprimidos em classe dominante para o esmagamento dos opressores (Lenine, 1917, O Estado e a Revolução) – a qual não pode limitar-se, pura e simplesmente, a um alargamento da democracia pois ao mesmo tempo que produz uma considerável ampliação da democracia, que se torna pela primeira vez a democracia dos pobres, a do povo e não mais apenas a da gente rica, a ditadura do proletariado traz uma série de restrições à liberdade dos opressores, dos exploradores, dos capitalistas (ibid.).

Conclusão

O domínio ideológico da burguesia impõe-se através de diferentes vias, afetando, inclusivamente, a linguagem e, portanto, vocábulos e expressões, provocando e alterando conceitos. Neste sentido, para um revolucionário, todos os termos e expressões comum e vulgarmente utilizados pela burguesia têm de ser lidos à luz da sua dominação de classe.

A linguagem, os conceitos, as categorias socioeconómicas que nos permitem ler e compreender a sociedade são, assim, fundamentais para levar avante a construção do socialismo e, simultaneamente, pôr-nos em guarda relativamente a propostas e linhas de ação que contrariam a perspetiva de transformação revolucionária das relações de produção impostas pelo capital financeiro.

A afirmação sem ambiguidades da sociedade que pretendemos construir obriga-nos, ainda, a um estudo e reflexão constante, para, assim, melhor compreender erros de análise e desvios ocorridos no seio de partidos com uma heroica história de resistência e luta, os quais acabaram por conduzir à (quase) desagregação destes.

A construção de um estado socialista e, portanto, de uma organização sociopolítica e económica de domínio de uma classe sobre outra (que, no socialismo, é o domínio do proletariado e de outras classes trabalhadoras, eventualmente em aliança com outras classes e camadas, sobre a grande burguesia nacional e estrangeira, ou seja, é a ditadura do proletariado ) não pode ser feito sem uma política de alianças com outras classes e camadas; contudo, não podemos confundir a aparente construção de soluções governativas, no quadro do capitalismo, com a transformação revolucionária deste.

Ao longo do processo de luta de classes, no quadro do modo de organização socioeconómico construído e dominado pela grande burguesia, tampouco poderemos subestimar a capacidade de integração das massas na luta pelo socialismo nem desvirtuar o conceito de tomada de consciência de classe para si, o qual se opera através das diferentes lutas; neste sentido, consideramos fundamental relembrar os ensinamentos de Lenine quando afirma que a consciência socialista das massas operárias é a única base que nos pode assegurar a vitória (V.I. Lenine, 1902, Que Fazer?).

Não esqueçamos que não há socialismo sem massas a lutar por ele.

Notas:

[1] A dominação política da burguesia, utilizando, tal como a ideológica, diferentes meios, recorre, por exemplo – como Engels o disse, e Lenine o relembrou ao sufrágio universal, que, em capitalismo, mais não é do que um instrumento da burguesia.

[2] Expressão, aliás, retirada do Programa do PCP em 1974, no VII Congresso Extraordinário, por se ter considerado que, numa altura em que se havia derrotado uma ditadura fascista, o conceito de ditadura poderia causar confusão.

Ana Saldanha

Publicado pela primeira vez no blog Odiário.info em 31.10.2014