A edificação do socialismo, que passa pela necessária superação do modo de organização atualmente dominante, sempre colocou o movimento comunista internacional perante a problemática de como efetuar essa transição. Na discussão e problematização desta questão duas leituras antagónicas desde sempre se fizeram: uma reformista, outra revolucionária.
Introdução
Consideramos a obra teórica de Karl Marx e de Friedrich Engels e o legado teórico-prático de Vladimir Ilich Lenine como uma arma teórica que nos possibilita a transformação do mundo. Neste sentido, as categorias filosóficas e da economia política de que aqueles nos muniram constituem a nossa base para uma análise científica da realidade concreta, através do estudo do desenvolvimento das relações de produção. O materialismo histórico e dialético constitui, desta forma, um sistema de pontos de vista científicos sobre as leis gerais que regem o desenvolvimento da natureza e da sociedade, permitindo-nos refletir sobre as possibilidades históricas e concretas da revolução socialista e, consequentemente, das vias a seguir para a edificação do socialismo, rumo ao comunismo.
Esta edificação, que passa pela necessária superação do modo de organização atualmente dominante, sempre colocou o movimento comunista internacional perante a problemática seguinte: como efetuar essa transição? Na discussão e problematização desta questão, duas leituras antagónicas desde sempre se fizeram: uma, reformista, que defende a possibilidade de existência de etapas intermédias entre o capitalismo e o socialismo; outra, revolucionária, herdeira dos ensinamentos das revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX e da Revolução Socialista de Outubro de 1917, que defende a necessária ruptura revolucionária como processo de transição do capitalismo para o socialismo.
A assunção da perspetiva reformista impõe-se, na Europa, após a Segunda Guerra Mundial, de forma a justificar a participação institucional de Partidos Comunistas em governos dominados pela classe dominante (que aqueles, aliás, teoricamente pretendiam substituir no poder). Paulatinamente, Partidos Comunistas com uma histórica e heroica trajetória de luta e de resistência, vão defendendo a possibilidade de uma via pacífica e institucional como possibilidade de construção do socialismo. Esta visão predominará no seio do PCF e do PCI pós-guerra, ajudando-nos a compreender quer o fim destes partidos como vanguarda da classe operária, quer a sua completa submissão à classe dominante, antagónica daquela, numa tentativa de conciliar interesses de classe que permitissem gerir o capitalismo, e não superá-lo.
É assim que, na Itália, Togliatti defende a “democracia progressiva”, enquanto o PCF aprova, em 1968, o Manifesto de Champigny – “Por uma Democracia Avançada, por uma França Socialista”. Nele, a “democracia avançada” surge como uma etapa intermédia necessária para a construção do socialismo, não se caracterizando a natureza de classe do Estado dessa “democracia avançada”, e, portanto, omitindo de que forma a luta entre as classes antagónicas permitiria a superação das relações de produção capitalistas.
A “democracia avançada” assentará, definitivamente, as bases do eurocomunismo que juntará numa mesma posição comum Georges Marchais (PCF), Enrico Berlinguer (PCI) e Santiago Carrilho (PCF), responsáveis pela destruição da matriz teórica dos partidos comunistas de que eram secretários-gerais.
Os ensinamentos de Marx e de Lenine são, neste ponto, fundamentais. O estudo que agora apresentamos pretende reflectir sobre a problemática dos “graus transitórios”, recorrendo, para tal, às categorias marxistas-leninistas que nos permitem ler e compreender as relações de produção impostas pelo capital.
Sobre a dominação ideológica linguística
A dominação ideológica da atual classe dominante faz-se através de diferentes meios e em diferentes disciplinas.
Consideramos, ao contrário da corrente idealista, que não é a ideia que determina a realidade, mas antes esta que determina as ideias e conceções. Neste sentido, a linguagem e a consciência são determinadas pela forma como o nosso ser exprime a sua vida produtiva (aquilo que produzimos e como produzimos) e nasce da necessidade de intercâmbio entre os seres humanos. Consciência e linguagem constituem, assim, um fenómeno social, pelo que ambas se baseiam nas relações reais que os indivíduos estabelecem entre si: “serão antes os homens que, desenvolvendo a sua produção material e as suas relações materiais, transformam, com esta realidade que lhes é própria, o seu pensamento e os produtos desse pensamento” (K. Marx e F. Engels, 1845, A Ideologia Alemã).
A linguagem é, neste sentido, um modo de ser do pensamento que se materializa num conjunto de signos que possibilita a comunicação – e, consequentemente, a compreensão humana. Assim sendo, ela não pode ser desligada da ideologia, pelo que a dominação ideológica de uma classe abrange, igualmente, o plano linguístico, podendo ou modificar a natureza de um conceito – e, assim, afastá-lo da sua etimologia original -, ou globalizá-lo.
Consideramos a globalização de um conceito, ideia ou expressão, como a extensão desse conceito, expressão ou ideia por parte de uma classe económica e politicamente dominante, num Estado imperialista, às classes dominadas do seu Estado e de outros Estados – os quais, apesar de serem capitalistas, são, também eles, dominados por um Império; a globalização de um conceito, ideia ou expressão não tem, por isso, em consideração as diferentes condições culturais e linguísticas dos Estados que se encontram sob o domínio imperial.
Queremos, assim, ressaltar que a globalização imperialista cultural, invertendo, modificando e alterando conceitos, expressões e ideias, fá-lo de forma a que o seu domínio perdure. A manipulação linguística por parte da classe, hoje em dia, mundialmente dominante é, assim, fundamental para a imposição da ideologia pretendida .
Aqueles que constituem a classe dominante têm consciência (e uma consciência de classe “para si”), dominando o conteúdo do momento histórico em que dominam como classe. São, assim, os pensadores, produtores e distribuidores de conhecimento e de ideias, pelo que “as suas ideias são as ideias dominantes da época” (K. Marx e F. Engels, A Ideologia Alemã, 1845). No plano nacional, as burguesias nacionais, de forma a efetivarem essa dominação através da linguagem, aliam-se à grande burguesia estrangeira – representante dos interesses dos centros imperialistas -, para, assim, disseminar conceitos, ou esvaziar outros, de acordo com as necessidades quer dos interesses próprios no interior do estado capitalista em que atuam, quer do estado imperial ao serviço do qual estão. A dominação ideológica constitui, desta forma, a consagração do sistema ideológico da classe dominante (Cf. K. Marx e Friedrich Engels, 1845, A Ideologia Alemã).
Sendo assim, quando são utilizadas expressões como, por exemplo, “liberdades democráticas”, “defesa da democracia” e “defesa das liberdades”, há que compreender tais expressões (e, consequentemente, os conceitos que as formam) num determinado quadro de imposição ideológica e, portanto, num determinado quadro de dominação de classe.
Neste sentido, a compreensão do conceito de “democracia” ou de “liberdade” depende da leitura de classe que lhe está subjacente. Quando o capital afirma que todas as “liberdades democráticas” estão asseguradas, no atual estádio de desenvolvimento capitalista, marcado pelo aprofundamento da exploração e de desigualdades que conduzem a um profundo retrocesso civilizacional e à barbárie, o papel dos comunistas deve ser o de desmontar ideologicamente este discurso.
Num sistema estruturalmente desigual, mantido através do domínio de uma minoria, exploradora, por um maioria, explorada, baseado na exploração do Homem e dos recursos naturais do planeta, nunca pode haver “liberdade”, ainda menos “democrática”, pelo que é fundamental (re)pensar conceitos globalmente vulgarizados. Assim sendo, para um revolucionário capaz de entender e ler cientificamente a sociedade que o rodeia, a democracia burguesa é”a democracia para uma ínfima minoria, a democracia para os ricos – tal é a democracia da sociedade capitalista” (Lenine, 1917, O Estado e a Revolução). Este conceito não pode, consequentemente, ser desligado (tal como o exercício do poder) da natureza de classe de um Estado.
Já em 1902, Lenine assinalava, em Que Fazer?, que há, por um lado, a democracia burguesa “inevitavelmente mesquinha, que exclui sorrateiramente os pobres” e, por outro, a democracia pela qual um revolucionário luta, e que significa “a supressão da dominação de classe”.
A consciência crítica deve-nos, desta forma, pôr em guarda relativamente a conceitos tantas vezes vulgarizados e cujo conteúdo se pretende global. Deve, igualmente, ajudar-nos a fazer uma crítica e autocrítica constantes, como homens e mulheres revolucionários, capazes de ler a realidade, sem esquecer a arma teórica que nos mune contra o capitalismo e a sua atual fase imperialista.
Da dominação ideológica (linguística) à problemática da política de alianças
Sobre a manipulação linguística, Lenine alertava para o erro da leitura reformista sobre a possível “colaboração das classes” (Lenine, 1902, Que Fazer?), acrescentando, ainda, que a liberdade “é uma grande palavra, mas foi sob a bandeira da liberdade da indústria que foram empreendidas as piores guerras de pilhagem, foi sob a bandeira da liberdade do trabalho, que os trabalhadores foram espoliados” (ibid.).
Neste sentido, a política de alianças entre, por um lado, a classe operária e outros trabalhadores e, por outro, outras classes e camadas antimonopolistas (mas não, necessariamente, anticapitalistas entre as quais, portanto, o “objetivo do socialismo” está ausente), tem de ser feita, não como um fim em si mesmo, mas como um meio para as classes e camadas maioritárias (não dominantes) sob a vanguarda da classe antagónica fundamental – dominarem a classe minoritária (dominante): “[os bolcheviques] Desde 1905 defenderam sistematicamente a aliança da classe operária com os camponeses contra a burguesia liberal e o czarismo sem negar-se nunca, ao mesmo tempo, a apoiar a burguesia contra o czarismo (na segunda fase das eleições ou nos empates eleitorais, por exemplo) e sem interromper a luta ideológica e política mais intransigente contra o partido camponês revolucionário-burguês, os “social-revolucionários”, que eram denunciados como democratas pequeno-burgueses que falsamente se apresentavam como socialistas” (Lenine, 1920, Esquerdismo: doença infantil do comunismo).
A política de alianças constitui, desta forma, uma estratégia, visando alcançar o objetivo revolucionário que guia a ação daqueles que por ele lutam: a construção do socialismo – etapa necessária para a construção de uma sociedade sem classes, o comunismo. Ora, este objetivo apenas pode ser alcançado sob a condução de um partido revolucionário, organizado e disciplinado, cuja “tarefa (…) não consiste em proclamar impossível a renúncia a quaisquer compromissos” mas, sobretudo, “em saber permanecer fiel, através de todos os compromissos, na medida em que eles são inevitáveis, aos seus princípios, à sua classe, à sua missão revolucionária, à sua tarefa de preparação da revolução e de educação das massas do povo para a vitória da revolução” (Lenine, 1917, Sobre os Compromissos). Esses compromissos devem, por isso, ser vistos como uma mera tática revolucionária, combinando quer formas legais (como a participação num parlamento burguês), quer formas ilegais de luta.
Os compromissos e alianças entre classes e outras camadas são, assim, necessários, mas apenas transitoriamente. Fazem-se, aliás, não apenas no quadro de uma ditadura da burguesia, mas, igualmente, no quadro de uma ditadura (revolucionária) do proletariado, pois as classes sociais (e, consequentemente, a luta de classes), uma vez atingido o poder do proletariado, em aliança com outras classes e camadas de trabalhadores, não desaparecem no estado socialista.
Assim, por exemplo, em 1920, três anos após a Revolução Socialista Russa, numa fase em que ainda se davam “os primeiros passos na transição do capitalismo para o socialismo, ou fase inferior do comunismo” (Lenine, 1920, Esquerdismo: doença infantil do comunismo), Lenine relembrava a continuação da existência de classes sociais, acrescentando que estas, mesmo”depois da conquista do Poder pelo proletariado”, continuariam a existir “durante anos em toda parte” (ibid.).
Num processo revolucionário, são, assim, necessárias alianças táticas e estratégicas, por vezes uma convivência estreita com classes e camadas cujos interesses se distanciam dos da maioria das classes e camadas laboriosas. Nesse sentido, se o socialismo pretende “não só expulsar os latifundiários e os capitalistas (…) como também suprimir os pequenos produtores de mercadorias” (ibid.) há que ter em consideração que estes pequenos produtores “não se pode[m] expulsar, não se pode[m] esmagar; é preciso conviver com eles, e só se pode (e deve) transformá-los, reeducá-los, mediante um trabalho de organização muito longo, lento e prudente” (ibid.).
Durante o processo revolucionário, as alianças e compromissos devem, pois, ser vistos como uma necessidade para a consolidação do socialismo, já que a classe de vanguarda, o campesinato pobre e outros trabalhadores continuam a ter de enfrentar a burguesia e seus aliados:”Só se pode vencer um inimigo mais forte retesando e utilizando todas as forças e aproveitando obrigatoriamente com o maior cuidado, minúcia, prudência e habilidade a menor “brecha” entre os inimigos, toda contradição de interesses entre a burguesia dos diferentes países, entre os diferentes grupos ou categorias da burguesia dentro de cada país; também é necessário aproveitar as menores possibilidades de conseguir um aliado de massas, mesmo que temporário, vacilante, instável, pouco seguro, condicional” (ibid.) com o objectivo de, gradualmente, extinguir as classes e, portanto, as contradições entre elas, de forma a construir a sociedade comunista.
Por outro lado, no quadro da ditadura da burguesia, as alianças e compromissos de classe não devem perder de vista o objetivo revolucionário de transformação da estrutura capitalista: “Toda a questão consiste em saber aplicar essa tática [compromissos] para elevar, e não para rebaixar, o nível geral de consciência, de espírito revolucionário e de capacidade de luta e de vitória do proletariado. (…) A tática acertada dos comunistas deve consistir em utilizar essas vacilações [dos democratas pequeno-burgueses] e não, de modo algum, em desprezá-las; para utilizá-las é necessário fazer concessões aos elementos que se inclinam para o proletariado – no caso e na medida exatos em que o fazem – e, ao mesmo tempo, lutar contra os elementos que se inclinam para a burguesia” (ibid.). Para realizar a sua missão histórica, a classe revolucionária deve, portanto, “saber utilizar todas as formas ou aspetos, sem a menor exceção, da atividade social (terminando depois da conquista do Poder político, às vezes com grande risco e imenso perigo, o que não terminou antes dessa conquista)” (ibid.) mas, igualmente “estar preparada para substituir uma forma por outra do modo mais rápido e inesperado” (ibid.).
Ora, se, na construção do socialismo, não podemos negar a importância e necessidade de uma política de alianças com classes e camadas antimonopolistas, a participação nas instituições políticas que representam a grande burguesia, no contexto do seu domínio, apenas pode ser visto como uma eventual tática transitória com vista à criação de uma situação revolucionária. A este propósito, relembremos a sucessão de acontecimentos (e de alianças) que conduziu à Revolução Socialista de Outubro de 1917: “A 27 de Fevereiro de 1917, o proletariado russo, juntamente com uma parte do campesinato despertado pelo curso dos acontecimentos militares, e com a burguesia, derrubou a monarquia. Em 21 de Abril de 1917 derrubou o poder absoluto da burguesia imperialista e transferiu o poder para as mãos dos pequenos burgueses conciliadores com a burguesia. Em 3 de Julho, o proletariado urbano, levantando-se espontaneamente numa manifestação, fez tremer o governo dos conciliadores. Em 25 de Outubro derrubou-o e implantou a ditadura da classe operária e do campesinato pobre” (Lenine, 1918, Uma lição dura, mas necessária).
Ou seja, a agregação de forças, por vezes através da via institucional, é necessária para concretizar, não um mero processo de rutura, mas um processo de rutura revolucionário. Será, aliás, através dos diferentes processos de luta interclassista, por vezes com alianças táticas, outras vezes estratégicas, que o proletariado, a classe revolucionária, vai, gradualmente, tomando consciência de classe “para si”, a qual, sendo a “consciência socialista das massas operárias”, constitui a “única base que nos pode assegurar a vitória” (V.I. Lenine, 1902, Que Fazer?).
Notas:
[1 ] A dominação política da burguesia, utilizando, tal como a ideológica, diferentes meios, recorre, por exemplo – como Engels o disse, e Lenine o relembrou ao sufrágio universal, que, em capitalismo, mais não é do que um instrumento da burguesia.
[2] Expressão, aliás, retirada do Programa do PCP em 1974, no VII Congresso Extraordinário, por se ter considerado que, numa altura em que se havia derrotado uma ditadura fascista, o conceito de “ditadura” poderia causar confusão.
Ana Saldanha
Publicado pela primeira vez no blog Odiário.info
Fonte da foto: Você sabia que a Revolução Russa completa 100 anos neste mês? | Mundo (brasildefatomg.com.br)