Alexandrino Saldanha
Parte II/II
O “Estado social”
Outra tese desenvolvida pela burguesia e aceite pelo proletariado que escamoteia completamente a noção do Estado como instrumento de opressão de uma classe sobre as demais é a das “funções sociais” do Estado ou o “Estado social”. Estas funções seriam uma propriedade, um atributo do “Estado em geral” socialmente abstratas – numa sociedade dividida em classes – que pretensamente foram instituídas na Europa democrática burguesa… pela “civilização”: a burguesia europeia está muito convencida do seu papel de exportadora de civilização para o mundo inteiro.
De um ponto de vista marxista-leninista a única “função social” do Estado burguês, nesta fase histórica o Estado dos monopólios, é garantir o domínio dos monopólios sobre as classes e camadas exploradas e oprimidas.
É então necessário refletir sobre o como e o porquê de os Estados capitalistas na Europa terem assumido a responsabilidade de assegurar socialmente a saúde, a educação, a proteção na velhice e na doença, entre outros, aos trabalhadores em geral, com variações de nível entre eles.

A assunção pelos Estados europeus, à exceção das ditaduras fascistas, como era o caso de Portugal e Espanha, foi, em primeiro lugar, uma conquista da classe operária pela sua luta em cada país, não apenas reivindicativa mas também política. Na Europa, a classe operária foi a vanguarda na resistência ao nazi-fascismo e, a leste, conseguiu fazer revoluções proletárias e populares que vieram a constituir o bloco socialista. O povo da URSS, com a classe operária e o campesinato, foi determinante na vitória contra as hordas nazis e, na libertação dos povos europeus, chegou a Berlim. Intervieram então as tropas aliadas dos países capitalistas para que os soviéticos não chegassem às costas atlânticas e libertassem toda a Europa da exploração capitalista. O sistema capitalista defrontava assim uma classe operária organizada, partidos comunistas fortes e o exemplo de sociedades socialistas onde não havia desemprego, onde a educação, a saúde, a proteção social eram gratuitas e asseguradas pelo Estado dos trabalhadores organizados em classe dominante.
Além disso, o impulso do desenvolvimento capitalista na Europa no pós guerra, auxiliado pelo plano Marshall, o fluxo de matérias-primas provenientes da nova partilha do mundo e dos mercados entre os Aliados, a continuação da rapina capitalista e da exploração dos trabalhadores dos países sob domínio colonial das potências vencedoras, a eclosão da revolução na China, o desenvolvimento dos movimentos de libertação nacional e a derrocada do sistema colonial, a derrota das tropas americanas na Coreia e no Vietname, constituíram outros tantos poderosos fatores que obrigaram as grandes burguesias dos países capitalistas europeus a procurarem satisfazer algumas reivindicações dos trabalhadores e a fazerem concessões com o objetivo de manterem mais ou menos satisfeitas e manietadas as respetivas classes trabalhadoras.
No seu atual estádio de desenvolvimento, o capital necessita de uma sociedade organizada para exercer o seu domínio. O capital também sai beneficiado pela socialização da prestação de cuidados da saúde e da educação e da assistência na doença e na velhice das classes trabalhadoras e de muitos outros serviços sociais. Mas, além disso, os trabalhadores descontam muito mais do que o patronato para os sistemas de segurança social e com os seus impostos sustentam também a educação e a saúde públicas. Outras vezes, quando a saúde e a educação são “tendencialmente gratuitas” ainda têm de pagar propinas e “taxas moderadoras”, isto é, diretamente o próprio serviço prestado. Tendo em conta a socialização praticamente total da produção, isto é, o assalariamento, a proletarização de quase toda a sociedade, é óbvio que é necessário organizar socialmente a saúde, a educação e alguma proteção social. O capital necessita de trabalhadores saudáveis e cada vez mais com competências científicas ou aproximadas.
Por que razão o capital, com as suas máquinas de Estado, se quer agora ver livre de obrigações sociais? Porque, afundado numa crise de sobreprodução à escala global, não consegue absorver toda a força de trabalho, há força de trabalho em excesso. Podem, portanto, desaparecer milhões de trabalhadores para aliviar as “cargas” dos orçamentos dos Estados, pretexto com o qual o capital monopolista transnacional esconde a rapina dos recursos dos países economicamente mais fracos da Europa. Podem, pois, sucumbir à doença, à fome, à velhice – estão a mais. Por muito cínicas que estas afirmações possam ser, ninguém duvide de que é assim que o capital “pensa” e funciona enquanto sistema.
Na Inglaterra do século XIX, não apenas Engels e Marx, mas também escritores como Dickens e em França Vítor Hugo, dão-nos conta de que o patronato industrial não se preocupava com a saúde dos seus trabalhadores que morriam de exaustão em idades muito jovens, porque já estavam a contar com os seus filhos tão famintos como eles na escravidão dos teares. Hoje, formar um operário, é dispendiosíssimo e leva muitos anos. Vem, ó Estado, alimentar as universidades e politécnicos! (é nesta fase que o Estado/capital se torna “keynesiano”).
Na década de 80, o Estado/Capital, tornou-se, na linguagem corrente, “neo-liberal”. Ronald Reagan e Margaret Thatcher foram os seus paladinos e promoveram os respetivos teóricos, os gurus das teorias ultra-reacionárias do “fim da história”. Abundantes teorizadores, estudos “científicos” e obras publicadas fizeram furor nos média do grande capital e em outros centros da fabricação e difusão da sua ideologia, apresentavam o capitalismo e o Estado burguês como a derradeira formação socioeconómica: as chamadas “teorias” do “fim da história”.Iniciou-se nessa altura um feroz ataque aos serviços públicos e desencadeou-se uma onda de privatizações (repare-se que, para haver privatização de empresas e serviços públicos era necessário que fossem isso mesmo:públicos; quer dizer que, em países capitalistas que desde o fim do século XIX não conheceram qualquer revolução, existiam serviços e grandes empresas públicas, como é óbvio. A existência de empresas nacionais e nacionalizadas não era uma particularidade da revolução portuguesa. A particularidade consistiu na nacionalização revolucionária dos principais meios de produção e do setor financeiro).
Havia alguma razão para que, tendo funcionado bem a intervenção das máquinas de Estado na prestação de serviços públicos que serviram bem o capital, fosse então necessário acabar com uma situação que até proporcionava uma almofada social deixando fora do horizonte grandes convulsões sociais? Havia.
Aqui a ideologia burguesa impede o discernimento da natureza das coisas, designadamente da natureza e do papel do Estado. Agora iniciava-se e anunciava-se uma crise capitalista e, ao mesmo tempo, uma alteração radical da correlação de forças a nível mundial pelo enfraquecimento e posterior derrota do sistema socialista. Sem desenvolver o segundo fator, até porque se coloca a questão de saber como é que o capitalismo, desaparecido de cena o seu principal inimigo, o socialismo, se afunda hoje numa crise de que não há memória e da qual ninguém sabe como sair, pode-se com facilidade admitir que o capital mundial começava a entrar numa crise que lhe abria como perspetiva, não aumentar a produção porque já não conseguia, por haver mercadorias em excesso, não vendáveis, mas aumentar a exploração e encontrar novas fontes de lucro precisamente nos serviços prestados pelo Estado à população e nas grandes empresas públicas até então. A produtividade continuou a aumentar com o avanço da ciência e da tecnologia com o que aumentou o número de trabalhadores excedentários. O capitalismo começava a entrar em autofagia.
Como decretava a ideologia burguesa e com o que se satisfazia a ideologia pequeno-burguesa, triunfara o “neo-liberalismo”. A partir desse momento, passou a haver um capitalismo “bom”, o do “Estado Social”, e um capitalismo “mau”, o “neo-liberal”. No capitalismo”bom”, os patrões tinham “escrúpulos”, no capitalismo “mau” os patrões perdiam todos, mas mesmo todos, os “escrúpulos” e eram “gananciosos”, defeito de que não padeciam os primeiros. Surgem, proliferam, florescem as receitas reformadoras do sistema: “Keynes, volta que estás perdoado!” , defendamos o “Estado-social”, brilhante “conquista civilizacional” da rica Europa! O objetivo de luta da classe operária podia passar a ser a revivescência do “Estado social”, estado em que seria permanentemente feliz e alcançado o qual podia construir, de nenúfar em nenúfar, perdão, de reforma em reforma, o socialismo.
O “Estado social” na Europa corresponde, pois, à atribuição ao Estado da satisfação de certas necessidades sociais que se criaram em dado momento histórico e numa dada correlação de forças de classe. Passado esse momento histórico, alterada a correlação de forças que lhe deu origem, também o Estado – forma especial da organização da repressão de uma classe sobre outra – recua no papel, que lhe foi imposto pela correlação das forças de classe, de organizador de serviços para satisfação de algumas das mais importantes necessidades sociais e acentua a sua vertente repressiva.

No vendaval da maior crise de sempre do capitalismo, os interesses monopolistas, o seu Estado, tentam a todo o custo desfazer-se dos serviços socialmente assegurados por ele, tal como um barco em vias de naufrágio se tenta livrar do lastro para não soçobrar. A divisa é agora: deixe-se morrer os que não produzem, salve-se o lucro. E mais ainda: todos os fundos sociais constituídos por descontos sobre os salários para a segurança social, os impostos pagos esmagadoramente pelos trabalhadores destinados à saúde e educação públicas, estão pura e simplesmente a ser transferidos para os bolsos da grande finança mundial através dos juros dos empréstimos para pagar a “dívida”.
Contrariamente ao que parece deduzir-se das linhas anteriores, tem de se afirmar que à classe operária não é, de maneira nenhuma, indiferente a forma como é explorada: se em condições brutais, se em condições mais mitigadas ou até confortáveis nalguns casos, sendo que o conforto muitas vezes esconde um grau de exploração maior. Diz Lenine, comentando um texto de Engels:
« […] isto não significa de modo nenhum que a forma de opressão seja indiferente ao proletariado, como “ensinam” certos anarquistas. Uma forma mais ampla, mais livre, mais aberta, de luta de classes e de opressão de classe facilita de modo gigantesco a luta do proletariado pela supressão das classes em geral.»1
Os fundadores do marxismo-leninismo não se cansaram de chamar a atenção para o papel da luta da classe operária e dos trabalhadores por reivindicações imediatas. É nessas lutas que se educa a classe, se formam os quadros. O desenvolvimento dessas lutas torna claro para o proletariado que, sem a abolição da exploração capitalista, não pode satisfazer nunca todas as suas necessidades por mais que lute. Cabe ao partido de vanguarda enquadrar, canalizar a luta de massas para o objetivo do socialismo, apontar ao proletariado a luta política pelo derrube do capitalismo. Mas esse avanço é precisamente conseguido pela luta por objetivos imediatos dirigida por uma vanguarda política que aponte como objetivo o socialismo.
É importantíssimo e indispensável conduzir a luta do proletariado e das massas em defesa dessas “funções sociais” do Estado burguês, em Portugal das conquistas alcançadas pela sua luta e pela Revolução de abril, por melhores condições de vida e de trabalho: saúde gratuita, educação gratuita, segurança social, habitação e outros. Em Portugal, estes direitos só foram conquistadas com o 25 de Abril, enquanto outros países capitalistas mais desenvolvidos da Europa alcançaram ou desenvolveram o “modelo” do “Estado social” após a II Guerra Mundial, em função das lutas do operariado e da pujança do socialismo no leste da Europa, como já foi dito. Porém, a sua existência não significa que a natureza exploradora de classe do Estado burguês se tenha modificado e este passe a ser um Estado da maioria produtora, organizada como classe dominante, e seus aliados. Ele continua a ser um Estado burguês, continua a ser uma ditadura da burguesia, continua a ser a grande burguesia organizada como classe dominante, num momento em que se vê obrigada a fazer determinadas concessões. Hoje, a questão que está colocada para o proletariado e as camadas exploradas é defender as “funções sociais do Estado” contra o Estado dos monopólios.
Contudo, o conceito de “Estado social” continua a entrar por portas e janelas de nossas casas todos os dias, como um aríete da ideologia burguesa, por muito que a alguns possa parecer um conceito progressista, e pareça até que a sua defesa deva ser uma palavra de ordem justa para a luta do proletariado. Quanto à justeza das reivindicações dos trabalhadores por saúde e educação gratuitas, proteção social, etc. estamos conversados, mas “Estado social” é conceito que não pode ser admitido pelos marxistas-leninistas, não faz sentido: um Estado é sempre “social” porque é uma criação da sociedade; o Estado é sempre uma ditadura e sê-lo-á enquanto existirem classes. O Estado dos produtores, da maioria do povo, a ditadura do proletariado, é muito mais democrático do que qualquer democracia burguesa. Verdadeiros marxistas-leninistas não podem navegar nesta não inocente confusão burguesa sobre o Estado, seja “social” ou não. Não podem limitar a sua estratégia, na prática, à defesa do Estado “social” e considerar que a estratégia e a tática da classe operária se limite à manutenção do Estado “social” burguês.
A Holanda acaba de anunciar que vai liquidar o “Estado social”. A Holanda, paraíso fiscal, sede das maiores companhias do mundo, centro de capital financeiro, aliada discreta como convém dos monopólios alemães, está podre de rica, e acaba com o “Estado social”. De que outras provas necessitaríamos para demonstrar que um Estado burguês continua a ser um Estado burguês sendo «social» e deixando de o ser? É a palavra “social” que torna aceitável para o proletariado o domínio da grande burguesia, o domínio do Estado burguês?
O Estado “social” burguês não pode ser a meta das aspirações do proletariado. A existência de sistemas de saúde e educação públicos, universais e gratuitos, direito à segurança social, existem ainda em países ricos e desenvolvidos, por exemplo no norte da Europa, mas não determinam a natureza de classe do Estado. Essa é determinada pela propriedade dos meios de produção, pelas relações de produção e pela forma da redistribuição do rendimento criado pelo trabalho social.
Um Estado que é compelido a providenciar socialmente determinados serviços, ou funções, não deixa de ser um Estado burguês, não exime as forças revolucionárias de terem de dirigir uma revolução para o liquidar. Para não irmos mais longe, basta observar que essas funções “sociais” do Estado – que em Portugal correspondem a direitos alcançados com o 25 de Abril e foram constitucionalmente consagrados, continue a sublinhar-se – deixam de ser «funções sociais do Estado» logo que o Estado do grande capital tem força ou necessidade de deixar de as assegurar. Na rica e “livre” Europa, a pequena burguesia e algumas camadas superiores de assalariados ideologicamente influenciadas pelo “sindicalismo” burguês, pensavam que esses serviços dispensados pelo Estado, de facto eram “conquistas civilizacionais” adquiridas para todo o sempre. Vê-se agora que o capital as transforma rápida e completamente em pó, quando tem necessidade de o fazer, quando quer largar lastro e deitar a mão aos fundos socialmente constituídos para ver se ainda se salva. Enquanto existir o sistema capitalista, nada há que seja irreversível por decreto, tudo dependerá da correlação de forças de classe, tudo dependerá da força e da organização dos trabalhadores e dos seus inimigos de classe.
A realidade dos nossos dias reduz a pó todas as ilusões pequeno-burguesas. Constata-se que o “Estado social” está em total descalabro por toda a Europa. Pela comunicação social toma-se conhecimento de que em Inglaterra, em França, em Itália, na Grécia são os mesmos direitos dos trabalhadores que estão a ser postos em causa: educação, saúde, segurança social, habitação, diminuição muito acentuada dos salários reais, de tal modo que, nos países mais pobres do sul já começa a grassar a fome e os desempregados já se contam por dezenas de milhões e mesmo da Alemanha surgem sinais de que a classe operária e os imigrantes são impiedosamente castigados com a exploração. A pequena burguesia está em pânico. Enquanto socialmente caem na proletarização, no desemprego e na fome milhões de pequenos produtores e pequenos comerciantes, a sua cúpula política, os partidos “socialistas” continuam a ser o braço armado do grande capital em que se tornaram depois da bancarrota da II Internacional, sucedendo-se em alternância aos partidos “social-democratas” e liberais, através da ilusão em que continuam a manter o proletariado que os escolhe como o mal menor contra os partidos vulgarmente denominados de direita.
Mas de tal maneira a questão do Estado está na ordem do dia, de tal modo o capital monopolista usa o Estado para defesa dos seus interesses ameaçados pela crise e tal é a confusão acerca do que é o Estado, que um intelectual pequeno-burguês, apoiante do Partido social-democrata, escreve o seguinte:
«Os militantes do PSD – os que lá estão por convicções e não os meros aparelhistas – já perceberam que os princípios políticos, como o sentido reformista, a defesa intransigente da classe média, a luta contra a desigualdade, um Estado forte e regulador, estão a deixar de ser a essência do partido.»2
São diretamente os monopólios que tomam estas medidas? Claro que são os seus Estados, com os seus parlamentos, os seus governos, as suas máquinas repressivas.
Se a Constituição da República portuguesa, que de modo algum é a constituição da Revolução, pode ainda ser invocada em nome da luta antimonopolista, dentro em breve deixará de o ser porque está em marcha um novo processo de revisão. Mas o facto é que é a relação de forças de classe que continua a determinar. O governo ultra-reacionário do atual governo PSD/CDS-PP continua a atuar acima e fora da Constituição arrasando tudo o que se lhe opõe. Diga-se que este mérito não pertence apenas ao atual governo. Todos os governos contrarrevolucionários, em que também o PS se incluiu, tinham uma constituição para cumprir e, no entanto, governaram contra ela para servir os interesses do capital, a constituição não constituiu para eles qualquer barreira. A barreira foi, sim, constituída pela luta de massas, isto é, pela força de classe.
As forças da classe operária não podem deixar de desmascarar a fundo o que o grande capital pretende com a tão falada «reforma» do Estado. Não é de espantar que a ideologia pequeno-burguesa, tonta como sempre, mas defendendo os seus interesses com unhas e dentes, pretenda enganar os trabalhadores e o povo, aceitando como boa uma «reforma» do Estado entendida como um processo através do qual a máquina do Estado se regeneraria com a eliminação dos «desperdícios», com uma aplicação «racional» dos fundos do orçamento de Estado e se tornaria numa máquina «eficaz», etc, etc. Esta questão aparentemente banal na política dos nossos dias aparece aqui tratada porque mostra sempre e sempre que a questão do Estado está colocada no seu centro. Quer se queira ou não, a questão do Estado está colocada no centro da luta de classes neste momento, está na ordem do dia ideológica e politicamente falando.
Para a grande burguesia, «reforma do Estado» é a liquidação das conquistas e dos direitos alcançados pela luta da classe operária e do povo. É acabar com os sistemas públicos de saúde, educação e segurança social e outros sistemas públicos. Em primeiro lugar, a máquina do Estado do capital, e não o Estado saído do 25 de abril, quer ver-se livre do maior número possível de despesas. Quer ver-se livre da sua quota-parte das despesas com o desemprego dos seus trabalhadores, com a saúde e a educação e proteção dos seus filhos. Há trabalhadores a mais que o capitalismo não pode absorver porque está a atravessar uma crise de sobreprodução de que não há memória. Há mercadorias em excesso para a procura solvente, há capital em excesso que não tem aplicação na esfera produtiva. Falamos da atual situação do capitalismo global.
Para o capital o desemprego é uma necessidade vital. Mesmo nas fases florescentes do desenvolvimento capitalista ele existe com uma finalidade: fazer baixar o preço da força de trabalho. Neste momento, se o desemprego pode representar um cargo para o capital, na medida em que também contribui para fundos sociais, ele é, além disso, a sua boia de salvação, na medida em que baixa drasticamente o preço da força de trabalho e com isso vai mitigar a queda da taxa de lucro decorrente da crise de sobreprodução e, mais à frente, vai aumentar essa taxa de lucro com salários mais baixos. E, contudo, tem de se repetir que as fontes de financiamento do Estado, mesmo para os sistemas públicos de saúde, educação e segurança social são fundamentalmente os impostos e os descontos dos trabalhadores, É também essa parte que está a ser canalizada para o grande capital na medida em que vai assumir o pagamento da «dívida pública» que é, afinal, a dívida privada dos bancos e de empresas públicas que o Estado descapitalizou durante décadas obrigando-as a recorrer a empréstimos externos ruinosos (swaps e outros). As grandes empresas desnacionalizadas proporcionam lucros astronómicos ao capital, que são exportados, não são reinvestidos em território nacional e pagam baixos impostos em paraísos fiscais, como a Holanda e a Suíça.
Além disso, os serviços sociais que o Estado tem prestado apresentam-se como apetitosas fontes de lucro, não só pela sua apropriação privada, mas por abrir também um mercado privado de acesso a esses serviços para quem os puder pagar.
Por isso, esta «reforma do Estado» que o grande capital quer levar por diante, a consegui-la, tornará mais clara e transparente a verdadeira natureza do Estado burguês: sem os serviços sociais que tem garantido, a máquina do Estado ficará reduzida aos órgãos do poder e ao grande funcionalismo, às forças de segurança, às forças armadas e à representação externa (diplomacia). É este o grande sonho dos fantoches dos monopólios “reformadores” do Estado.
A “sensibilidade social” dos governos da burguesia
O «senso comum» produz alarvidades como os conceitos de «falta de sensibilidade social do governo» ou a crítica das suas «políticas erradas» que têm aparecido no discurso político de vários quadrantes, mas não é admissível no discurso político científico marxista-leninista que só pode conceber o Estado como aparelho especial de repressão da classe dominante. Qualquer Estado não é política e socialmente neutro. Logo, não pode promover políticas certas ou erradas consideradas abstratamente de um ponto de vista de classe, nem promover um interesse nacional fora ou acima das classes (a questão do interesse nacional e a medida em que a burguesia não pode encarnar a sua defesa é outra questão que aqui não se discute) . O Estado do grande capital, como é o português, promove políticas certíssimas para a grande burguesia e os interesses imperialistas e só os estultos o podem criticar por isso. Por mais criticado que seja, continuará a promover os interesses das classes que representa enquanto a correlação de forças não for favorável às classes e camadas que ele oprime. Este Estado só pode ser derrubado o que, materialmente, não se conseguirá com palavras de propaganda por mais sonoras e afirmativas que possam ser, mas apenas pela revolução.
O sr. Seguro é pateticamente ridículo quando lamenta a «falta de sensibilidade social do governo». É ridículo porque toda a gente sabe que é hipócrita e é ridículo por presumir (eventualmente) que tal coisa possa existir. Num Estado capitalista só existirão governos com «sensibilidade social» quando a grande burguesia tiver medo das classes exploradas sendo obrigada a fazer concessões, ou quando altos índices de produtividade e a exploração de outros povos permitirem uma situação relativamente confortável à sua classe operária para, com maior segurança e comodidade, continuar a exploração da classe operária do seu país e dos outros. O sr. Seguro dificilmente enganará alguém, mas o seu discurso é perigoso porque incute nas massas a ideia de que as reformas serão suficientes para satisfazer as suas necessidades, sem obviamente colocar a questão da liquidação da exploração capitalista. Os sociais-democratas do Bloco de Esquerda, que também muito criticam a falta de «sensibilidade social» do governo, enganam o povo, porque omitem que também eles não pretendem mais do que reformas, do que um capitalismo «de rosto humano», gerido por governos com «sensibilidade social». Mas as massas exploradas, essas, têm necessariamente de querer o fim da exploração.
É o momento de perguntar: qual tem sido o papel da máquina do Estado dos monopólios no descalabro da situação nacional? É este o Estado democrático saído do 25 de Abril? Estas perguntas são simplesmente pueris e as respostas por demais evidentes. Foi a partir da máquina do Estado não quebrada do 25 de Abril que a contrarrevolução se lançou ao ataque, contra a Reforma Agrária, contra as nacionalizações, contra o controlo operário, contra os direitos dos trabalhadores, contra as liberdades, etc, etc. Quais são as peças dessa máquina? São o governo, o parlamento, o presidente da república, as forças armadas e forças de segurança, os tribunais e ainda o aparelho ideológico de repressão constituído pelos órgãos da comunicação do capital.
Os governos, os parlamentos, os presidentes da república, os tribunais como órgãos do Estado, logo são órgãos de repressão da classe dominante. E, a este respeito, a classe operária, os trabalhadores têm de ter uma resposta clara, de classe, científica, marxista-leninista e não uma resposta vulgar do senso comum. Qualquer governo, por maior que possa ser o seu grau de democratismo, por maior que seja a boa vontade de eventuais governantes patrióticos, sem sair dos limites do Estado burguês, isto é, sem destruir o sistema de produção capitalista substituindo-o pelo modo de produção socialista com a propriedade social dos principais meios de produção e da banca; sem planificação económica; sem destituir a grande burguesia dos fatores do seu poder, a propriedade privada e o Estado; sem que, sob a direção da classe operária, o povo trabalhador e os aliados da classe operária estejam organizados como poder que promove os seus interesses e que reprime as classes exploradoras precedentes, não poderá ser outra coisa senão a continuação do capitalismo. Não é materialmente possível. É imaginável que o capital e os monopólios nacionais e estrangeiros se deixem desapossar, mesmo lentamente, sem reagirem? E como podem os proletários defender-se da reação da grande burguesia se não tiverem os meios de um Estado do povo para se defenderem? Não há reforma que possa alcançar progressivamente este objetivo, tal como incansavelmente disseram os fundadores do marxismo-leninismo combatendo o oportunismo e a história tem em todos os momentos demonstrado.
Quase como um resumo, temos de dizer que o Estado português é o instrumento especial de repressão do capital monopolista nacional e internacional sobre a classe operária, os trabalhadores e todas as camadas antimonopolistas, visando aumentar a exploração e amarrar Portugal às organizações imperialistas que estão a destruir a economia e a soberania nacionais para a perpetuação da exploração dos monopólios sobre o nosso país.
Fotos:
1 Lenine, O Estado e a Revolução
2 Pedro Marques Lopes, Público, 20.10.2013