RESENHA DO LIVRO – OS ÚLTIMOS ANOS DE KARL MARX: UMA BIOGRAFIA INTELECTUAL II

RESENHA DO LIVRO – OS ÚLTIMOS ANOS DE KARL MARX: UMA BIOGRAFIA INTELECTUAL II

A avaliação de Chernyshevsky começou a abrir Marx para a possibilidade de que, sob certas condições, a universalização do capitalismo não era necessária para uma sociedade socialista. Esta foi uma emenda, não uma rutura radical (como certos marxistas do terceiro mundo e teóricos da transmodernidade como Enrique Dussel argumentaram) com a interpretação marxista tradicional do papel necessário que o capitalismo desempenha na criação, através das suas contradições imanentes, das condições para a possibilidade do socialismo. .Em 1877 Marx escreveu uma carta não enviada ao jornal russo Notas Patrióticas respondendo a um artigo intitulado “Karl Marx perante o Tribunal do Sr. Zhukovsky” escrito por Nikolai Mikhailovsky, um crítico literário da ala liberal dos populistas russos. No seu artigo, Mikhailovsky argumentou que

Um discípulo russo de Marx… deve reduzir-se ao papel de espetador… Se ele realmente compartilha as visões histórico-filosóficas de Marx, deveria ficar satisfeito ao ver os produtores a serem divorciados dos meios de produção, deveria tratar esse divórcio como a primeira fase do inevitável e, no resultado final, de um processo benéfico (60)

Isso não foi, no entanto, um comentário do campo da esquerda. A maioria dos marxistas russos na época também achava que a posição marxista era que um período de capitalismo era necessário para que o socialismo fosse possível na Rússia. Além disso, Marx também tinha polemizado, no apêndice da primeira edição alemã de O Capital, com Alexander Herzen, um defensor da visão de que “o povo russo [estava] naturalmente predisposto ao comunismo” (61). A sua carta não enviada, no entanto, critica Mikhailovsky por “transformar [o seu] esboço histórico da génese do capitalismo na Europa Ocidental numa teoria histórico-filosófica do curso geral fatalmente imposto a todos os povos, quaisquer que sejam as circunstâncias históricas em que se encontrem”. (64)

É neste contexto que deve ser lida a famosa carta de 1881 da revolucionária russa Vera Zasulich. Nesta carta, ela coloca-lhe a “questão de vida ou morte” de cuja resposta dependia “o destino pessoal dos socialistas revolucionários [russos]” (53). A questão girava em torno de saber se a obshchina1 russa é “capaz de se desenvolver numa direção socialista” (Ibid.). Por um lado, uma fação dos populistas argumentou que a obshchina foi capaz de “organizar gradualmente a sua produção e distribuição numa base coletivista” e que, portanto, os socialistas “devem dedicar todas as suas forças à libertação e ao desenvolvimento da comuna” (54).

 

Por outro lado, Zasulich menciona que aqueles que se consideravam os “discípulos por excelência” de Marx tinham a visão de que “a comuna está destinada a perecer”, que o capitalismo deve enraizar-se na Rússia para que o socialismo se torne uma possibilidade (54).

Marx elaborou quatro rascunhos de resposta a Zasulich, três versões longas e a última curta que ele enviaria. Na sua resposta, ele repetiu o sentimento que tinha expressado na sua resposta inédita ao artigo de Mikhailovsky, a saber, que ele tinha “restringido expressamente… a inevitabilidade histórica” da passagem do feudalismo ao capitalismo aos “países da Europa Ocidental” (65). Se o capitalismo se enraizasse na Rússia, “não seria por causa de alguma predestinação histórica” (66). Foi então, argumentou ele, completamente possível para a Rússia – através da obshchina – para evitar o destino que a história proporcionou à Europa Ocidental. Se a obshchina, através da ligação da Rússia ao mercado mundial – “se apropriar dos resultados positivos do modo de produção [capitalista], está assim em condições de desenvolver e transformar a forma ainda arcaica da sua comuna rural, em vez de a destruir” (67).

 

Em essência, se as contradições internas e externas da obshchina pudessem ser superadas por meio incorporação das forças produtivas avançadas que já se tinham desenvolvido no capitalismo da Europa Ocidental, então a obshchina poderia desenvolver um socialismo baseado na sua apropriação das forças produtivas de uma maneira não antagónica com as suas relações sociais comunistas. Marx, então, no espírito de Chernyshevsky, ficaria do lado de Zasulich quanto ao potencial revolucionário da obshchina e defenderia a possibilidade de a Rússia não apenas saltar etapas, mas de incorporar os frutos produtivos do capitalismo da Europa Ocidental, rejeitando os seus males. Esse sentimento é repetido no prefácio Marx e de Engels à segunda edição russa do Manifesto do Partido Comunista, que seria publicado a expensas suas na revista populista russa People’s Will [A vontade do povo (NT)].

 

À esquerda: A última fotografia de Karl Marx tirada por E. Durtertre em Argel em 1882. Coleção BG A9/383.

À direita: Uma fotomontagem mostrando como seria Marx com o cabelo cortado e sem barba. Autor e fonte desconhecidos

 

O texto de Musto também fornece uma imagem excecional dos 72 dias, em grande parte não examinados, que Marx passou em Argel, “o único momento da sua vida que ele passou fora da Europa” (104). Essa viagem foi feita por recomendação do seu médico, que o fazia deslocar-se constantemente em busca de climas mais favoráveis ao seu estado de saúde. Eleanor lembrou que Marx se animou com a ideia da viagem porque achou que o clima favorável poderia criar as condições para recuperar sua saúde e terminar O Capital. Ela disse que “se ele tivesse sido mais egoísta, teria simplesmente permitido que as coisas seguissem seu curso. Mas para ele uma coisa estava acima de tudo: devoção à causa ”(103)


O clima argelino não era o esperado e
a sua condição não melhoraria a ponto de poder regressar ao trabalho. No entanto, as cartas do seu tempo em Argel trazem comentários interessantes sobre as relações sociais que ele viveu. Por exemplo, numa carta a Engels, ele menciona a altivez com que o “colono europeu vive entre as ‘raças inferiores’, seja como colono ou simplesmente em negócios, geralmente considera-se ainda mais inviolável que o belo Guilherme I” (109). Depois de ter observado “um grupo de árabes a jogar às cartas, ‘alguns deles vestidos de forma pretensiosa, até rica’ e outros mal vestidos, comentou numa carta para a sua filha Laura que “ um ‘verdadeiro muçulmano’… não distingue os filhos de Maomé, quer as circunstâncias sejam a boa ou má sorte,e que a atmosfera geral entre os muçulmanos era de “absoluta igualdade nas suas relações sociais” (108-9).

Marx também comentou a brutalidade das autoridades francesas e certos costumes árabes, incluindo numa carta a Laura uma divertida história sobre um filósofo e um pescador que “apelou bastante ao seu lado prático” (110). As suas cartas de Argel somam-se à infinidade de outras evidências contra a tese, oriunda da academia burguesa ocidental pseudo-radical, de que Marx era um simpatizante do colonialismo europeu.

 

Pouco depois do regresso da sua viagem, a saúde de Marx continuou a deteriorar-se. A combinação do facto de estar acamado e a morte de Jennychen tornou agonizantes as suas últimas semanas. O caráter melancólico desta época é captado no último escrito que Marx fez, uma carta ao Dr. Williamson dizendo “Encontro algum alívio numa dor de cabeça terrível. A dor física é o único lenitivo da dor mental” (123). Alguns meses depois de escrever isto, em 14 de março de 1883, Marx morreria. Relatando a angústia da experiência de encontrar morto o seu amigo e camarada de longa data, Engels escreveu, numa carta a Friedrich Sorge, um ditado epicurista que Marx repetia com frequência – “a morte não é uma desgraça para quem morre, mas para quem sobrevive” (124). Em suma, seria impossível fazer justiça, em espaço tão limitado, a tão magnífica obra de erudição marxista.

Notas

[i] Chernyshevsky foi o autor de What is to be Done [Que Fazer] (1863), um título que VI Lenine retomaria em 1902.

 

1 Para melhor esclarecimento da questão consultar

https://en.wikipedia.org/wiki/Obshchina#:~:text=In%20the%20obshchina%2C%20alliances%20were,the%20concept%20of%20mutual%20help. (NT)

 

 

Carlos L. Garrido é um estudante de pós-graduação cubano-americano e instrutor de filosofia na Southern Illinois University, Carbondale. Os focos da sua investigação incluem o marxismo, Hegel e o socialismo americano do início do século XIX. O seu trabalho académico apareceu em Critical Sociology, The Journal of American Socialist Studies Peace, Land, and Bread. Juntamente com vários editores do The Journal of American Socialist Studies, Carlos está atualmente a trabalhar numa antologia serial do socialismo americano. O seu popular trabalho teórico e político apareceu na Monthly Review Online, CovertAction Magazine, The International Magazine, O Instituto Marx-Engels do Peru, Contracorrentes, Janata Weekly, Hampton Institute, Orinoco Tribune, Workers Today, Delinking, Electronicanarchy, Friends of Socialist China, Associazione Svizerra-Cuba, Arkansas Worker, Intervención y Coyuntura, e em Midwestern Marx, que ele co-fundou e onde participa como membro do conselho editorial. Como analista político com foco na América Latina (especialmente Cuba), foi entrevistado pelo Russia Today e apareceu em dezenas de entrevistas de rádio nos EUA e em todo o mundo.