RESENHA DO LIVRO – OS ÚLTIMOS ANOS DE KARL MARX: UMA BIOGRAFIA INTELECTUAL I

RESENHA DO LIVRO – OS ÚLTIMOS ANOS DE KARL MARX: UMA BIOGRAFIA INTELECTUAL

 

Por: Carlos L. Garrido

 

https://mltoday.com/book-review-the-last-years-of-karl-marx-an-intellectual-biography/, 07.03.2022

 

The Last Years of Karl Marx: An Intellectual Biography, por Marcello Musto.(Stanford University Press, Stanford, CA, 2020. 194 pages.)

 

The Last Years of Karl Marx: An Intellectual Biography, de Marcello Musto, oferece um olhar esclarecedor sobre a obra e a vida de Karl Marx durante o período menos examinado da sua vida. A oscilação de Musto entre a obra e a vida de Marx fornece aos leitores tanto uma atração intelectual para a investigação sobre os últimos anos de Marx, uma tarefa facilitada pela publicação retomada em 1998 do Marx-Engels Gesamtausgabe [Obra Completa] (MEGA2) (que tem sentido publicado 27 novos volumes e espera concluir com 114), como uma imagem calorosa da vida íntima de Marx que certamente provocará risos e lágrimas.

Os últimos anos da vida de Marx foram

emocional, física e intelectualmente dolorosos. Nessa época, ele teve de suportar a extrema depressão da sua filha Eleanor (ela suicidar-se-ia em 1898); a morte da sua esposa Jenny, cujo rosto, segundo ele, “desperta as maiores e mais doces lembranças da [sua] vida”; a morte de sua amada filha primogénita, Jenny Caroline (Jennychen); e uma doença pulmonar que o mantinha esporadicamente, mas por períodos substanciais, afastado do seu trabalho (96, 98, 122). Essas condições, entre outras interrupções naturais para um homem da sua estatura no movimento operário internacional, impossibilitaram-lhe a conclusão de qualquer um de seus projetos, incluindo principalmente os volumes II e III de O capital , e a sua terceira edição alemã do volume I de O Capital.

 

O tempo que passou com os netos e as pequenas vitórias que a luta socialista conseguiu (por exemplo, os mais de 300 mil votos que os social-democratas alemães receberam em 1881 para o novo parlamento) dar-lhe-iam e a Jenny ocasionais momentos de alegria (98) . Uma faceta da última fase da sua vida que pode parecer surpreendente foi o imenso prazer que ele teve com a matemática. Como Paul Lafargue disse sobre o tempo em que Marx teve de suportar a deterioração da saúde da sua esposa, “a única maneira pela qual ele se poderia livrar da opressão causada pelos seus sofrimentos era mergulhar na matemática” (97). O que começou como um “desvio [para] a álgebra” com o propósito de corrigir erros que ele notou nos sete cadernos que hoje conhecemos como Grundrisse, o seu estudo da matemática acabou por ser uma grande fonte de “consolo moral” e no qual “ele se refugiou [durante] os momentos mais angustiantes de sua vida agitada” (33, 97).

 

Independentemente da sua fragilidade indisfarçável, ele deixou uma infinidade de investigações rigorosas e notas sobre assuntos tão vastos como as lutas políticas na Europa, Estados Unidos, Índia e Rússia; economia; campos matemáticos como cálculo diferencial e álgebra; antropologia; história; estudos científicos como geologia, mineralogia e química agrária; e mais. Contra a difamação de certos ‘radicais’ na academia burguesa que se autopromoviam afundando uma caricatura de um Marx ‘eurocêntrico’, ‘simpatizante do colonialismo’, ‘redutor‘ e ‘economicamente determinista’, o estudo de Musto sobre o falecido Marx mostra que “ele era tudo menos eurocêntrico, economicista ou obcecado pelo conflito de classes” (4).

 

O texto de Musto também abrange a publicação de Lawrence Krader de 1972 de The Ethnological Notebooks of Karl Marx [Notas Etnográficas de Karl Marx], contendo os seus cadernos sobre Sociedade Antiga de Lewis Henry Morgan, The Aryan Village [A Aldeia ariana] de John Budd Phear , Lectures on the Early History of Institutions [Leituras sobre a antiga história das insitutições] de Henry Sumner Maine e The Origin of Civilisation [A origem da civilização] de John Lubbock .

 

De longe, o mais importante foi o texto de Morgan, que transformaria a visão de Marx sobre a família de “unidade social do antigo sistema tribal” para “germe não apenas da escravidão, mas também da servidão” (27). O texto de Morgan também fortaleceria a visão que Marx tinha sobre o Estado desde a sua Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, em 1843, a saber, que o Estado é um “poder histórico (não natural) que subjuga a sociedade, uma força que impede a plena emancipação do indivíduo” (31). A natureza do Estado, como pensaram Marx e Engels e Morgan confirmou, é “parasitária e transitória” (Ibid.). Os estudos da Sociedade Antiga de Morgan e de outros importantes antropólogos também seriam retomados por Engels que, partindo de algumas notas de Marx, publicaria em 1884 As origens da família, da propriedade privada e do Estado, um texto seminal no corpus marxista clássico.

 

Mais desconhecidos da erudição marxista são os seus cadernos sobre o livro do antropólogo russo Maksim Kovalevsky (um dos seus “amigos científicos”) mais próximos, Propriedade Comunitária da Terra: As Causas, Curso e Consequências do seu Declínio. O facto de não ser estudado deve-se a que, até quase uma década atrás, estava disponível apenas para aqueles que podiam aceder ao arquivo B140 da obra de Marx no Instituto Internacional de História Social da Holanda. Isso mudou com a publicação espanhola na Bolívia de Karl Marx: Escritos sobre la Comunidad Ancestral(Escritos sobre a Comunidade Ancestral) que continha os “Cuadernos Kovalevsky” (Cadernos Kovalevsky) de Marx.

 

Embora apreciasse os seus estudos sobre a América pré-colombiana (impérios azteca e inca) e a Índia, Marx criticava as projeções de Kovalevsky de categorias europeias para essas regiões e “recriminava-o por homogeneizar dois fenómenos distintos” (20). Como observa Musto, “Marx era altamente cético quanto à transferência de categorias interpretativas entre contextos históricos e geográficos completamente diferentes” (Ibid.).

 

O estudo dos escritos políticos de Marx tem sido geralmente limitado ao 18 Brumário de Louis Bonaparte (1852), a “Crítica do Programa de Gotha” (1875) e A Guerra Civil na França (1871). O livro de Musto, no seu espaço limitado, vai além desses textos costumeiros e destaca a importância do papel de Marx nos movimentos socialistas na Alemanha, França e Rússia. Isso inclui, por exemplo, o seu envolvimento no Programa Eleitoral Francês dos Trabalhadores Socialistas de 1880 e no Questionário aos Trabalhadores. O programa incluía o envolvimento dos próprios trabalhadores, o que levou Marx a exclamar que este era “o primeiro movimento operário real na França” (46). O questionário de 101 pontos continha perguntas sobre as condições de emprego e remuneração dos trabalhadores e visava fornecer um levantamento em massa das condições da classe trabalhadora francesa.

 

No que diz respeito aos escritos políticos de Marx, o texto de Musto também inclui as críticas de Marx ao proeminente economista americano Henry George; a sua condenação ao sinofóbico Dennis Kearney, líder do Partido dos Trabalhadores da Califórnia; a sua condenação do colonialismo britânico na Índia e na Irlanda e os seus elogios ao nacionalista irlandês Charles Parnell. Em cada caso, Musto destaca a importância que Marx deu ao estudo concreto das condições únicas de cada luta. Não havia uma fórmula universal a ser aplicada em todos os lugares e em todos os momentos. No entanto, de todos os seus compromissos políticos, o mais importante dos seus envolvimentos seria na Rússia, onde as suas considerações sobre o potencial revolucionário das comunas rurais (obshchina)1 teriam uma tremenda influência no seu movimento socialista.

 

O filósofo socialista russo Nikolay Chernyshevsky (1828 – 1889)

 

Em 1869 Marx começou a aprender russo “para estudar as mudanças que ocorrem no império czarista” (12). Durante toda a década de 1870 dedicou-se a estudar as condições agrárias na Rússia. Como Engels a brincar lhe dizia numa carta de 1876 depois de Marx lhe ter recomendado que derrubasse Eugene Dühring.

 

O senhor pode deitar-se numa cama quente a estudar as condições agrárias russas em geral e a renda da terra em particular sem ser interrompido, mas é esperado que eu ponha todo o resto de lado imediatamente, que encontre uma cadeira dura, beba um pouco de vinho frio e me dedique a ir atrás do escalpe daquele lúgubre sujeito Dühring.

Fora dos seus estudos, ele tinha o filósofo socialista russo Nikolai Chernyshevsky [i] na mais alta estima. Disse que estava “familiarizado com a maior parte da sua escrita” e considerava o seu trabalho “excelente” (50). Marx chegou a considerar “’publicar algo’ sobre a ‘vida e personalidade de Chernyshevsky, de modo a criar algum interesse por ele no Ocidente’” (Ibid.). No que diz respeito à obra de Chernyshevsky, o que mais influenciou Marx foi a sua avaliação de que “em algumas partes do mundo o desenvolvimento económico poderia contornar o modo de produção capitalista e as terríveis consequências sociais que teve para a classe operária na Europa Ocidental” (Ibid.) .

 

Chernyshevsky sustentou que

 

Quando um fenómeno social atingiu um alto nível de desenvolvimento numa nação, a sua progressão para esse estágio noutra nação mais atrasada pode ocorrer muito mais rapidamente do que na nação avançada (Ibid.).

Para Chernyshevsky, o desenvolvimento de uma nação ‘atrasada’ não precisava de passar por todos os “estágios intermédios” exigidos para a nação avançada; em vez disso, ele argumentou que “a aceleração ocorre graças ao contacto que a nação atrasada tem com a nação avançada” (51). A história para ele era “como uma avó, terrivelmente apaixonada pelos seus netos pequenos. Aos retardatários ela não [deu] os ossos, mas a medula” (53)