Da dominação linguística à problemática da política de alianças

 

 

Linguagem e domínio ideológico da burguesia

Sob este título genérico, publicamos quinzenalmente um artigo – de uma série de seis  sobre os abusos e vulgarizações da linguagem que, na prática quotidiana, desvirtuam categorias marxistas e leninistas. Hoje, publica-se o terceiro – Da dominação linguística à problemática da política de alianças

III

Da dominação linguística à problemática da política de alianças

Sobre a manipulação linguística, Lénine alertava para o erro da leitura reformista sobre a possível “colaboração das classes” (Lénine, 1902, Que Fazer?), acrescentando, ainda, que a liberdade “é uma grande palavra, mas foi sob a bandeira da liberdade da indústria que foram empreendidas as piores guerras de pilhagem, foi sob a bandeira da liberdade do trabalho, que os trabalhadores foram espoliados” (Lénine, 1902, Que Fazer?).

Neste sentido, a política de alianças entre, por um lado, a classe operária e outros trabalhadores e, por outro, outras classes e camadas antimonopolistas (mas não, necessariamente, anticapitalistas – entre as quais, portanto, o objectivo do socialismo está ausente), tem de ser feita, não como um fim em si mesmo, mas como um meio para as classes e camadas maioritárias (não dominantes) – sob a vanguarda da classe antagónica fundamental – dominarem a classe minoritária (dominante):

“[os bolcheviques] Desde 1905 defenderam sistematicamente a aliança da classe operária com os camponeses contra a burguesia liberal e o tzarismo sem negar-se nunca, ao mesmo tempo, a apoiar a burguesia contra o tzarismo (na segunda fase das eleições ou nos empates eleitorais, por exemplo) e sem interromper a luta ideológica e política mais intransigente contra o partido camponês revolucionário-burguês, os “social-revolucionários”, que eram denunciados como democratas pequeno-burgueses que falsamente se apresentavam como socialistas” (Lénine, 1920, Esquerdismo: doença infantil do comunismo).

política de alianças constitui, desta forma, uma tática, visando alcançar o objetivo revolucionário que guia a acção daqueles que por ele lutam: a construção do socialismo – etapa necessária para a construção de uma sociedade sem classes, o comunismo.

Ora, este objetivo apenas pode ser alcançado sob a condução de um partido revolucionário, organizado e disciplinado, cuja “tarefa (…) não consiste em proclamar impossível a renúncia a quaisquer compromissos” mas, sobretudo, “em saber permanecer fiel, através de todos os compromissos, na medida em que eles são inevitáveis, aos seus princípios, à sua classe, à sua missão revolucionária, à sua tarefa de preparação da revolução e de educação das massas do povo para a vitória da revolução” (Lénine, 1917, Sobre os Compromissos). Esses compromissos devem, por isso, ser vistos como uma mera tática revolucionária, combinando quer formas legais (como a participação num parlamento burguês), quer formas ilegais de luta.

Os compromissos e alianças entre classes e outras camadas são, assim, necessários, mas apenas transitoriamente.

Fazem-se, aliás, não apenas no quadro de uma ditadura da burguesia, mas, igualmente, no quadro de uma ditadura (revolucionária) do proletariado, pois as classes sociais (e, consequentemente, a luta de classes), uma vez atingido o poder do proletariado, em aliança com outras classes e camadas de trabalhadores, não desaparecem no estado socialista.

Assim, por exemplo, em 1920, três anos após a Revolução Socialista Russa, numa fase em que ainda se davam “os primeiros passos na transição do capitalismo para o socialismo, ou fase inferior do comunismo” (Lénine, 1920, Esquerdismo: doença infantil do comunismo), Lénine relembrava a continuação da existência de classes sociais, acrescentando que estas, mesmo “depois da conquista do Poder pelo proletariado”, continuariam a existir “durante anos em toda parte” (Lénine, 1920, Esquerdismo: doença infantil do comunismo).

Num processo revolucionário, são, assim, necessárias alianças táticas e estratégicas, por vezes uma convivência estreita com classes e camadas cujos interesses se distanciam dos da maioria das classes e camadas laboriosas.

Nesse sentido, se o socialismo pretende “não só expulsar os latifundiários e os capitalistas (…) como também suprimir os pequenos produtores de mercadorias” (Lénine, 1920, Esquerdismo: doença infantil do comunismo) há que ter em consideração que estes pequenos produtores “não se pode[m] expulsar, não se pode[m] esmagar; é preciso conviver com eles, e só se pode (e deve) transformá-los, reeducá-los, mediante um trabalho de organização muito longo, lento e prudente” (Lénine, 1920, Esquerdismo: doença infantil do comunismo).

Durante o processo revolucionário, as alianças e compromissos devem, pois, ser vistos como uma necessidade para a consolidação do socialismo, já que a classe de vanguarda, o campesinato pobre e outros trabalhadores continuam a ter de enfrentar a burguesia e seus aliados:

“Só se pode vencer um inimigo mais forte retesando e utilizando todas as forças e aproveitando obrigatoriamente com o maior cuidado, minúcia, prudência e habilidade a menor “brecha” entre os inimigos, toda contradição de interesses entre a burguesia dos diferentes países, entre os diferentes grupos ou categorias da burguesia dentro de cada país; também é necessário aproveitar as menores possibilidades de conseguir um aliado de massas, mesmo que temporário, vacilante, instável, pouco seguro, condicional” (Lénine, 1920, Esquerdismo: doença infantil do comunismo) com o objectivo de, gradualmente, extinguir as classes e, portanto, as contradições entre elas, de forma a construir a sociedade comunista.

Por outro lado, no quadro da ditadura da burguesia, as alianças e compromissos de classe não devem perder de vista o objectivo revolucionário de transformação da estrutura capitalista:

“Toda a questão consiste em saber aplicar essa tática [compromissos] para elevar, e não para rebaixar, o nível geral de consciência, de espírito revolucionário e de capacidade de luta e de vitória do proletariado. (…) A tática acertada dos comunistas deve consistir em utilizar essas vacilações [dos democratas pequeno-burgueses] e não, de modo algum, em desprezá-las; para utilizá-las é necessário fazer concessões aos elementos que se inclinam para o proletariado – no caso e na medida exatos em que o fazem – e, ao mesmo tempo, lutar contra os elementos que se inclinam para a burguesia” (Lénine, 1920, Esquerdismo: doença infantil do comunismo).

Para realizar a sua missão histórica, a classe revolucionária deve, portanto, “saber utilizar todas as formas ou aspectos, sem a menor exceção, da atividade social (terminando depois da conquista do Poder político, às vezes com grande risco e imenso perigo, o que não terminou antes dessa conquista)” (Lénine, 1920, Esquerdismo: doença infantil do comunismo) mas, igualmente “estar preparada para substituir uma forma por outra do modo mais rápido e inesperado” (Lénine, 1920, Esquerdismo: doença infantil do comunismo).

Ora, se, na construção do socialismo, não podemos negar a importância e necessidade de uma política de alianças com classes e camadas antimonopolistas, a participação nas instituições políticas que representam a grande burguesia, no contexto do seu domínio, apenas pode ser visto como uma eventual táctica transitória com vista à criação de uma situação revolucionária.

A este propósito, relembremos a sucessão de acontecimentos (e de alianças) que conduziu à Revolução Socialista de Outubro de 1917:

“A 27 de Fevereiro de 1917, o proletariado russo, juntamente com uma parte do campesinato despertado pelo curso dos acontecimentos militares, e com a burguesia, derrubou a monarquia. Em 21 de Abril de 1917 derrubou o poder absoluto da burguesia imperialista e transferiu o poder para as mãos dos pequenos burgueses conciliadores com a burguesia. Em 3 de Julho, o proletariado urbano, levantando-se espontaneamente numa manifestação, fez tremer o governo dos conciliadores. Em 25 de Outubro derrubou-o e implantou a ditadura da classe operária e do campesinato pobre” (Lénine, 1918, Uma lição dura, mas necessária).

Ou seja, a agregação de forças, por vezes através da via institucional, é necessária para concretizar, não um mero processo de rutura, mas um processo de rutura revolucionário. Será, aliás, através dos diferentes processos de luta interclassista, por vezes com alianças táticasoutras vezes estratégicas, que o proletariado, a classe revolucionária, vai, gradualmente, tomando consciência de classe para si, a qual, sendo a “consciência socialista das massas operárias”, constitui a “única base que nos pode assegurar a vitória” (V.I. Lénine, 1902, Que Fazer?).

Julho 2020