A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky (V. I. Lénine, 1918)

Leitura/curso

Kaustky publica A Ditadura do Proletariado, na qual este chefe ideológico da II Internacional deturpava e vulgarizava de toda a forma a teoria marxista da revolução proletária e caluniava o Estado soviético. Lénine começou a trabalhar na resposta/livro A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky em princípios de Outubro de 1918.

Lénine atribuiu grande importância ao desmascaramento das conceções oportunistas de Kaustky quanto à revolução socialista e à ditadura do proletariado.

 

O livro A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky foi publicado em 1919, em Inglaterra, França e Alemanha.

Com esta obra, Lénine denuncia aquilo em que se tinha tornado a II Internacional. Para isso era importante analisar os sofismas próprios de um traidor como Kautsky, que acabou por renegar e entrar em rutura com o próprio marxismo. Lénine apelida Kaustky de social-democrata, com o reconhecimento da defesa da pátria na guerra e a junção à burguesia para ridicularizar toda a ideia de revolução, bem como todos os seus passos. Refere Lénine que a classe operária não pode realizar o seu objetivo revolucionário mundial se não lançar e fizer uma guerra implacável à falta de caráter, às atitudes de servilismo perante o oportunismo, ou às vulgarizações teóricas sem precedentes do marxismo. O kautskismo não é casual, mas produto das contradições da II Internacional, da subordinação ao oportunismo, usando palavreado marxista (Lénine, 1915, O Socialismo e a Guerra). Na verdade, Kautsky deturpa por completo Marx, adaptando-o ao oportunismo e renegando a revolução, ao mesmo tempo que a reconhecia…mas apenas em palavras.

1. Como Kautsky transformou Marx num vulgar liberal

A questão fundamental que Kaustky aborda na sua brochura é a questão do conteúdo essencial da revolução proletária, designadamente a questão da ditadura do proletariado. É uma questão da maior importância e é a questão principal de toda a luta de classe proletária.

 

Kaustky diz que «A oposição de ambas as correntes socialistas» (isto é, dos bolcheviques e dos não bolcheviques) é «a oposição de dois métodos radicalmente diferentes: o democrático e o ditatorial».

Diz Lénine que a questão da ditadura do proletariado é a questão da relação do Estado proletário com o Estado burguês, da democracia proletária com a democracia burguesa.

Kaustky tenta esbater esta questão falando de democracia em geral e não da democracia burguesa (que é um conceito de classe).

 

Diz Lénine que a ditadura do proletariado – a que Kaustky tenta dar pouca importância dizendo que é uma palavrinha – é a essência da doutrina de Marx. pois diz Marx (1875 in Crítica do Programa de Gotha) que:

«Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista encontra-se o período da transformação revolucionária da primeira na segunda. A este período corresponde também um período político de transição, e o Estado deste período não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado.»

Dizer que, quando Marx escreveu isto, não deu muita importância é renegar o próprio marxismo através do servilismo e oportunismo. Ambos, Marx e Engels, quer em cartas quer em obras impressas, quer antes quer depois da Comuna de Paris, falaram inúmeras vezes da ditadura do proletariado.

A expressão «ditadura do proletariado» é uma formulação historicamente mais concreta e cientificamente mais precisa da tarefa do proletariado de «quebrar» a máquina de Estado burguesa, da qual (tarefa) tanto Marx como Engels, tendo em conta a experiência das revoluções de 1848 e mais ainda da de 1871, falam de 1852 a 1891, durante quarenta anos.

 

Kaustky é mestre na arte de ser marxista em palavras e lacaio da burguesia de facto. Diz Kaustky que Marx não indicou detalhadamente como concebia a ditadura do proletariado, o que é falso. Kaustky diz que ditadura implica supressão da democracia, o poder pessoal de uma só pessoa sem quaisquer barreiras ou leis. Mas a ditadura do proletariado não é a ditadura de uma pessoa no sentido literal, mas de uma classe, pelo que não é de ditadura pessoal que fala Marx. Trata-se de uma medida transitória de emergência imposta por uma classe, a dos explorados. Refere Lénine que não se fala de uma forma de governo mas de uma situação que necessariamente se deve produzir “em toda a parte onde o proletariado conquistou o poder político”.

Depois, é “natural para um liberal falar de «democracia» em geral. Um marxista nunca se esquecerá de colocar a questão: «para que classe?» Toda a gente sabe, por exemplo que as insurreições dos escravos na antiguidade revelavam imediatamente a essência do Estado antigo como ditadura dos escravistas. Essa ditadura suprimia a democracia entre os escravistas, para eles? Toda a gente sabe que não…ou então não haveria luta de classes.

O que é preciso esclarecer é que “a ditadura não significa necessariamente a supressão da democracia para a classe que exerce essa ditadura sobre as outras classes, mas significa necessariamente a supressão (ou uma restrição muito essencial, o que é também uma das formas de supressão) da democracia para a classe sobre a qual ou contra a qual se exerce a ditadura”.

 

Quando fala de ditadura vs ditadura do proletariado, Marx refere o seguinte:

ditadura é um poder que se apoia diretamente na violência e não está amarrado por nenhumas leis.

ditadura revolucionária do proletariado é um poder conquistado e mantido pela violência do proletariado sobre a burguesia, um poder que não está amarrado por nenhumas leis. E isto só se conquista pela guerra.

Kaustky deturpa Marx ao referir que «em Marx as palavras sobre a ditadura de uma classe não têm sentido literal (mas um sentido segundo o qual ditadura não significa violência revolucionária, mas uma conquista “pacífica” da maioria sob a “democracia” burguesa».

Há que referir que há diferença entre forma de governo e forma ou tipo de Estado. A monarquia e a república são formas de governo diferentes e não são mais do que variedades do Estado burguês, isto é, da ditadura da burguesia.

A revolução proletária é impossível sem a destruição violenta da máquina de Estado burguesa e a sua substituição por uma nova que, segundo as palavras de Engels, «não é já um Estado no sentido próprio» (Marx, Crítica do Programa de Gotha).

A ditadura revolucionária do proletariado é violência contra a burguesia; esta violência torna-se particularmente necessária, como muito pormenorizadamente e muitas vezes explicaram Marx e Engels (particularmente em A Guerra Civil em França e no seu prefácio), pela existência dos militares e da burocracia/máquina do Estado.

 

Kautsky tenta a todo o custo esconder o conceito de violência revolucionária.

Diz Kaustky que a Comuna de Paris foi uma ditadura do proletariado, e foi eleita por sufrágio universal, isto é, sem privar a burguesia do seu direito de voto, isto é, «democraticamente» (usando a linguagem de Kaustky). Mas é preciso referir que na Comuna de Paris, o estado-maior, as camadas superiores da burguesia, fugiram de Paris para Versalhes. Ainda referir que a Comuna lutou contra Versalhes, como governo operário da França contra o governo burguês. Isso nada tem a ver com «sufrágio universal» ou «democracia pura» pois tudo foi decidido em Paris e não na França. Quando Marx disse que a Comuna tinha cometido um erro não tendo tomado o Banco (de toda a França), será que Marx tinha em conta a «democracia pura»?

E é preciso recordar que Engels refere a propósito da Comuna que uma “revolução é, indubitavelmente, a coisa mais autoritária que é possível. Uma revolução é um ato por meio do qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra parte por meio de espingardas, baionetas e canhões, isto é, meios extraordinariamente autoritários. E o partido vitorioso é necessariamente obrigado a manter o domínio que as suas armas inspiram aos reacionários. Se a Comuna de Paris não se tivesse apoiado na autoridade do povo armado contra a burguesia ter-se-ia mantido mais do que um só dia?” Marx e Engels mostraram que a Comuna suprimiu o exército e o funcionalismo, suprimiu o parlamentarismo, destruiu a «excrescência parasitária que é o Estado», etc.

 

Não existe «democracia pura» numa sociedade dividida em classes!

A ditadura não é uma forma de governo mas de Estado. E as classes podem governar ao contrário do que diz Kaustky (porque nada vê além do parlamento burguês, que nada nota além dos «partidos governantes»). Tal é o exemplo dos latifundiários da Idade Média.

Kautsky deturpou o conceito de ditadura do proletariado e transformou Marx num vulgar liberal tentando esbater o conteúdo de classe da democracia burguesa, esquivando-se à violência revolucionária por parte dos oprimidos e explorados.

 

2. Democracia Burguesa e Democracia Proletária

Não se pode falar de «democracia pura» enquanto existirem classes diferentes, pode-se falar apenas de democracia de classe (digamos entre parênteses que «democracia pura» é não só uma frase de ignorante, que revela a incompreensão tanto da luta de classes como da essência do Estado, mas também uma frase triplamente vazia, pois na sociedade comunista a democracia, modificando-se e tornando-se um hábito, extinguir-se-á, mas nunca será democracia «pura»).

A «democracia pura» é uma frase mentirosa de liberal que procura enganar os operários. A História conhece a democracia burguesa, que vem substituir o feudalismo, e a democracia proletária, que vem substituir a burguesa.

Lénine diz que Kaustky dedica páginas e páginas a tentar demonstrar que a democracia burguesa é progressista em comparação com a Idade Média e que o proletariado deve obrigatoriamente utilizar a mesma na sua luta contra a burguesia. Diz Lénine que tal é uma “charlatanice de liberal, destinada a enganar os operários (….) Kaustky atira simplesmente areia «sábia» aos olhos dos operários”.

Lénine acusa Kaustky de roubar ao marxismo apenas aquilo que é aceitável para os liberais, para a burguesia (a crítica da Idade Média, o papel histórico progressista do capitalismo em geral e da democracia capitalista em particular) e rejeita, silencia e esbate no marxismo aquilo que é inaceitável para a burguesia (a violência revolucionária do proletariado contra a burguesia para a suprimir). Por isso, Kaustky é um lacaio da burguesia.

A democracia burguesa, sendo um grande progresso histórico em comparação com a Idade Média, continua a ser sempre — e não pode deixar de continuar a ser sob o capitalismo — estreita, amputada, falsa, hipócrita, paraíso para os ricos, uma armadilha e um engano para os explorados, para os pobresA democracia burguesa é a democracia para os ricos.

Quer o Estado antigo e feudal quer «o moderno Estado representativo são um instrumento de exploração do trabalho assalariado pelo capital» (Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado).

Refere Engels que «O Estado não é mais do que uma máquina para a opressão de uma classe por outra e de modo nenhum menos na república democrática do que na monarquia» (Prefácio de Engels à Guerra Civil de Marx).

O sufrágio universal é «o barómetro da maturidade da classe operária. Mais não pode ser nem será nunca, no Estado de hoje» (Marx/Engels, Werke).

«A Comuna devia ser não um corpo parlamentar, mas um corpo de trabalho, executivo e legislativo ao mesmo tempo . . . Em vez de decidir de três em três anos ou de seis em seis que membro da classe dominante havia de representar e reprimir o povo no Parlamento, o sufrágio universal devia servir ao povo constituído em Comunas como o voto individual serve a todos os outros patrões para escolherem operários, capatazes e contabilistas no seu negócio» (Marx, A Guerra Civil em França).

Não há Estado, nem mesmo o mais democrático, onde não haja escapatórias ou reservas nas constituições, que assegurem à burguesia a possibilidade de lançar as tropas contra os operários, declarar o estado de guerra, etc, «em caso de violação da ordem», de facto em caso de «violação» pela classe explorada da sua situação de escrava e de tentativas de não se comportar como escrava. Democracia burguesa é a proteção de uma minoria.

O partido dominante de uma democracia burguesa só garante a proteção da minoria a outro partido burguês, enquanto o proletariado, em qualquer questão séria, profunda e fundamental, em vez de «proteção da minoria» apenas recebe o estado de guerra ou os massacres. Quanto mais desenvolvida é a democracia tanto mais próxima se encontra do massacre ou da guerra civil em qualquer caso de profunda divergência política perigosa para a burguesia.

Os parlamentos burgueses estão tanto mais submetidos à Bolsa e aos banqueiros quanto mais desenvolvida está a “democracia”. Daqui não decorre que não se deva utilizar o parlamentarismo burguês (e os bolcheviques utilizaram-no para desmascarar a burguesia). Mas não podemos ignorar ou esquecer o carácter historicamente limitado e relativo do parlamentarismo burguês. No mais democrático Estado burguês, as massas oprimidas deparam a cada passo com a contradição flagrante entre a igualdade formal, que a «democracia» dos capitalistas proclama, e os milhares de limitações e subterfúgios reais que fazem dos proletários escravos assalariadosÉ precisamente esta contradição que abre os olhos às massas para a podridão, a falsidade e a hipocrisia do capitalismoÉ precisamente esta contradição que os agitadores e propagandistas do socialismo denunciam constantemente perante as massas a fim de as preparar para a revolução!

democracia proletária, de que o Poder Soviético é uma das formas, desenvolveu e alargou como nunca no mundo a democracia, precisamente para a gigantesca maioria da população, para os explorados e os trabalhadores.

Mil barreiras fecham às massas trabalhadoras a participação no parlamento burguês (que nunca resolve as questões mais importantes na democracia burguesa: estas são resolvidas pela Bolsa e pelos bancos), e os operários sabem e sentem, veem e percebem perfeitamente que o parlamento burguês é uma instituição alheia, um instrumento de opressão dos proletários pela burguesia, uma instituição de uma classe hostil, da minoria exploradora.

Os Sovietes são a organização direta das próprias massas trabalhadoras e exploradas, às quais facilita a possibilidade de organizarem elas próprias o Estado e de o administrarem de todas as maneiras possíveis.

Precisamente a vanguarda dos trabalhadores e dos explorados, o proletariado das cidades, tem, neste sentido, a vantagem de ser o mais unido pelas grandes empresas; é-lhe mais fácil que a quaisquer outros eleger e controlar os eleitos. A organização soviética facilita automaticamente a unificação de todos os trabalhadores e explorados em torno da sua vanguarda, o proletariado.

velho aparelho burguês — o funcionalismo, os privilégios da riqueza, da instrução burguesa, das relações, etc. (estes privilégios de facto são tanto mais variados quanto mais desenvolvida está a democracia burguesa) — tudo isso desaparece com a organização soviética. A liberdade de imprensa deixa de ser uma hipocrisia, pois se expropriam à burguesia as tipografias e o papel. O mesmo acontece com os melhores edifícios, os palácios, palacetes, casas senhoriais, etc. O Poder Soviético retirou imediatamente aos exploradores milhares e milhares destes melhores edifícios, tornando assim um milhão de vezes mais «democrático» o direito de reunião para as massas, esse direito de reunião sem o qual a democracia é um engano. As eleições indiretas dos Sovietes não locais facilitam os congressos dos Sovietes, tornam todo o aparelho mais barato, mais ágil, mais acessível aos operários e aos camponeses num período em que a vida ferve e é necessário poder atuar com especial rapidez para revogar o seu deputado local ou enviá-lo ao congresso geral dos Sovietes.

A democracia proletária é um milhão de vezes mais democrática que qualquer democracia burguesa. O Poder Soviético é um milhão de vezes mais democrático que a mais democrática república burguesa.

A democracia proletária é a democracia para os pobres, e não uma democracia para os ricos, como na realidade é toda a democracia burguesa, mesmo a melhor. A ditadura do proletariado, é um milhão de vezes mais democrática que a mais democrática república burguesa.

 

3. Pode Haver Igualdade Entre o Explorado e o Explorador?

Os exploradores transformam inevitavelmente o Estado (e trata-se da democracia, isto é, de uma das formas do Estado) em instrumento de domínio da sua classe, da classe dos exploradores sobre os explorados. Por isso, também o Estado democrático, enquanto houver exploradores que dominem sobre uma maioria de explorados, será inevitavelmente uma democracia para os exploradores. O Estado dos explorados deve distinguir-se radicalmente desse Estado, deve ser a democracia para os explorados e a repressão dos exploradores, e a repressão duma classe significa a desigualdade dessa classe, a sua exclusão da «democracia».

Marx:

«…Quando os operários substituem a ditadura da burguesia pela sua ditadura revolucionária…para quebrarem a resistência da burguesia…, dão ao Estado uma forma revolucionária e transitória…» (Marx, O Indiferentismo Político)

Engels:

«Ora como o Estado é, de facto, apenas uma instituição transitória, da qual a gente se serve na luta, na revolução para reprimir pela força os adversários, é puro absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado ainda usa o Estado, usa-o não no interesse da liberdade mas da repressão dos seus adversários, e logo que se pode falar de liberdade, o Estado deixa de existir como tal . . .» (Engels, Carta a A. Bebel, 1875).

Porque é necessária a ditadura do proletariado, de acordo com Marx e Engels?

Para quebrar a resistência da burguesia;

para inspirar medo aos reacionários;

. para manter a autoridade do povo armado contra a burguesia;

. para que o proletariado possa reprimir pela violência os seus adversários.

O explorador não pode ser igual ao explorado. Esta verdade é o conteúdo mais essencial do socialismo. Não pode haver igualdade real enquanto não estiver totalmente suprimida toda a possibilidade da exploração duma classe por outra.

Não se pode suprimir os exploradores dum só golpe. Não se pode expropriar dum só golpe todos os latifundiários e capitalistas de um país duma certa extensão. Além disso, a expropriação por si só, como ato jurídico ou político, está muito longe de resolver o problema, porque é necessário desalojar de facto os latifundiários e os capitalistas, substituir de facto a sua administração das fábricas e das propriedades agrícolas por outra administração, operária. Não pode haver igualdade entre os exploradores, que, durante longas gerações, se distinguiram pela instrução, pelas condições de uma vida rica e pelos hábitos, e os explorados, cuja massa, mesmo nas repúblicas burguesas mais avançadas e democráticas, é embrutecida, inculta, ignorante, assustada e divididaDurante muito tempo depois da revolução, os exploradores conservam inevitavelmente uma série de enormes vantagens de facto: mantêm o dinheiro (não é possível suprimir o dinheiro de imediato), certos bens móveis, frequentemente consideráveis, conservam as relações, os hábitos de organização e de administração, o conhecimento de todos os «segredos» (costumes, processos, meios, possibilidades) da administração, conservam uma instrução mais elevada, a proximidade com o pessoal técnico superior (que vive e pensa à maneira burguesa), conservam (e isto é muito importante) uma experiência infinitamente superior na arte militar, etc.

Se os exploradores são derrotados num só país — e este é, naturalmente, o caso típico, pois a revolução simultânea numa série de países constitui uma rara exceção —, continuarão a ser, no entanto, mais fortes do que os explorados, pois as relações internacionais dos exploradores são enormes. Que uma parte dos explorados, da massa menos desenvolvida de camponeses médios, artesãos, etc., segue e é suscetível de seguir os exploradores, provam-no até agora todas as revoluções, incluindo a Comuna (porque entre as tropas de Versalhes havia também proletários).

Em tal estado de coisas, supor que numa revolução minimamente profunda e séria a solução do problema depende simplesmente da relação entre a maioria e a minoria, é a maior estupidez, é o mais tolo preconceito de um vulgar liberal, é enganar as massas, esconder-lhes uma verdade histórica manifesta. Esta verdade histórica consiste em que, em qualquer revolução profunda, a regra é que os exploradores, que durante uma série de anos conservam sobre os explorados grandes vantagens de facto, opõem uma resistência prolongada, obstinada e desesperadaNunca os exploradores se submetem à decisão da maioria dos explorados antes de terem posto à prova a sua superioridade numa desesperada batalha final, numa série de batalhas.

A transição do capitalismo para o comunismo constitui toda uma época histórica. Enquanto ela não terminar os exploradores continuam a manter a esperança da restauração, e esta esperança transforma-se em tentativas de restauração. E depois da primeira derrota séria, os exploradores derrubados, que não esperavam o seu derrubamento, não acreditavam nele, não admitiam a ideia dele, lançam-se com uma paixão furiosa, com um ódio cem vezes acrescido na luta pelo regresso do «paraíso» que lhes foi arrebatado, pelas suas famílias que viviam tão docemente e a quem a «vil população» condena à ruína e à miséria (ou ao «simples» trabalho…). E atrás dos capitalistas exploradores arrasta-se uma grande massa da pequena burguesiaque, como mostra a experiência histórica de dezenas de anos de todos os países, oscila e vacila, que hoje segue o proletariado e amanhã se assusta com as dificuldades da revolução, cai no pânico à primeira derrota ou semiderrota dos operários, se enerva, se agita, choraminga, corre de um campo para outro.

E em tal estado de coisas, numa época de guerra desesperada, aguda, quando a história coloca na ordem do dia as questões da existência ou não existência de privilégios seculares e milenários, fala-se de maioria e minoria, de democracia pura, de que não é necessária a ditadura, de igualdade entre exploradores e explorados!

Decénios de um capitalismo relativamente «pacífico», de 1871 a 1914, acumularam nos partidos socialistas que se adaptam ao oportunismo.

Enquanto Kautsky fala da poderosa autoridade moral do sufrágio universal na democracia burguesa, Engels refere a autoridade do povo armado contra a burguesia.

Poderá a democracia ser conservada também para os ricos, também para os exploradores, no período histórico do derrubamento dos exploradores e da substituição do seu Estado pelo Estado dos explorados?

O que é um traço necessário, uma condição obrigatória da ditadura, é a repressão violenta dos exploradores como classe e, por conseguinte, a violação da democracia pura, isto é, da igualdade e da liberdade em relação a essa classe.

É possível a ditadura do proletariado sem violação da democracia em relação à classe dos exploradores?

O proletariado não pode vencer sem quebrar a resistência da burguesia, sem reprimir pela violência os seus adversários, e onde há «repressão violenta», onde não há «liberdade», naturalmente não há democracia.

 

4. Que os Sovietes Não Ousem Transformar-se em Organizações Estatais

Os Sovietes são a forma russa da ditadura proletária.

Os Sovietes aparecem em 1905, como corporações locais, mas, em 1917, transformaram-se numa organização de toda a Rússia.

O Soviete era uma organização de combate de uma classe.

Mas o que é o Estado?

O Estado não é mais que uma máquina para a repressão duma classe por outra.

No Manifesto Comunista, ao falar do Estado necessário à classe operária, Marx dizia que «o Estado é o proletariado organizado como classe dominante». Há que destruir a «organização estatal» burguesa e criar a «organização estatal» proletária. Para Kautsky e todos os social-democratas, o Estado é, «apesar de tudo», algo fora das classes ou acima das classes.

Kaustky refere que a democracia burguesa é progressista face à Idade Média pelo que deveria ser utilizada pelos trabalhadores. Mas a democracia burguesa é insuficiente. E se o trabalho preparatório da revolução proletária, a educação e a formação do exército proletário foram possíveis (e necessários) no quadro do Estado democrático burguês, limitar o proletariado neste quadro uma vez que se chegou às «batalhas decisivas», é trair a causa proletária.

Mesmo em tempo de paz, quando não existe uma situação revolucionária, a luta de massas dos operários contra os capitalistas, por exemplo, a greve de massas, provoca em ambas as partes uma exasperação terrível, uma extraordinária paixão na luta, constantes referências da burguesia a que é e quer continuar a ser «senhora da sua casa», etc. E em tempo de revolução, quando a vida política está em efervescência, uma organização como os Sovietes, que abrange todos os operários de todos os ramos da indústria, e depois todos os soldados e toda a população trabalhadora e pobre do campo, é uma organização que por si mesma, pela marcha da luta, pela simples «lógica» do ataque e da resposta é necessariamente levada a colocar a questão de forma decisivaTentar tomar uma posição intermédia, «conciliar» o proletariado e a burguesia, é uma cretinice.

Dizer aos Sovietes: lutai, mas não tomeis todo o poder de Estado nas vossas mãos, não vos transformeis em organizações estatais, significa pregar a colaboração de classes e a «paz social» entre o proletariado e a burguesia.

 

5. A Assembleia Constituinte e a República Soviética

A Assembleia Constituinte, eleita em 25 de novembro de 1917, acabou, por várias razões, por entrar em contradição com a vontade do povo e a dinâmica revolucionária e foi dissolvida no dia da sua abertura, em 18 de janeiro de 1918. As eleições para a constituinte corresponderam a um compromisso de Lénine que vinha desde a revolução de fevereiro, mas este, segundo afirmou nas suas Teses sobre a Assembleia Constituinte, sempre considerou a democracia soviética uma forma de democratismo mais elevada do que a república burguesa habitual com a Assembleia Constituinte.

Nessas mesmas Teses, na 3ª, Lénine afirma que «Para a passagem do regime burguês ao socialista, para a ditadura do proletariado, a república dos Sovietes (de deputados operários, soldados e camponeses) é não só a forma de tipo mais elevado das instituições democráticas (comparada com a república burguesa habitual coroada por uma Assembleia Constituinte), mas também é a única forma capaz de assegurar a passagem menos dolorosa para o socialismo.»

Kautsky coloca essa dissolução no centro das suas críticas a Lénine e ao processo revolucionário, argumentando que os bolcheviques tinham suprimido a democracia (além de os acusar de terem dissolvido a Constituinte por serem minoritários). Lénine considera que esta questão tem grande importância, porque a correlação entre democracia burguesa e democracia proletária se colocou naquele momento praticamente perante a revolução.

Na luta dos Sovietes contra a Assembleia Constituinte, Lénine afirma a precedência do direito da revolução sobre os direitos formais dessa Assembleia e acusa Kautsky de abordar o problema de um ponto de vista meramente formal, burguês, sem levar em conta o conteúdo de classe desta e o conjunto de acontecimentos que tinham levado a uma nova arrumação de forças de classe naquele momento – a história da luta de classes e da guerra civil. Na conjuntura, a palavra de ordem “Todo o poder à Assembleia Constituinte” correspondia aos interesses dos democratas-constitucionalistas contrarrevolucionários.

«O ponto de vista democrático formal é precisamente o ponto de vista do democrata burguês, que não reconhece que os interesses do proletariado e da luta proletária de classe são superiores.», diz ele.

Ao abordar o problema desse ponto de vista formal, burguês, Kautsky passava em claro o facto de o sufrágio universal dar por vezes «parlamentos pequeno-burgueses e por vezes reacionários e contrarrevolucionários» e «que uma coisa é a forma das eleições, a forma da democracia, e outra coisa [é] o conteúdo de classe duma determinada instituição».

O que estava em causa, teoricamente, na brochura de Kautsky, era saber se, sim ou não, «a república parlamentar democrático-burguesa é inferior a uma república do tipo da Comuna ou do tipo dos Sovietes» e, sobre isso Kautsky nada diz. Mesmo quando, entre fevereiro e outubro, os mencheviques eram maioritários, se manifestava já nos Sovietes a sua divergência em relação às instituições políticas burguesas.

«Os Sovietes — órgão de luta das massas oprimidas — refletiam e traduziam, como é natural, o estado de espírito e as mudanças de opinião dessas massas infinitamente mais depressa, mais completa e fielmente do que quaisquer outras instituições (nisto reside, diga-se de passagem, uma das razões que fazem da democracia soviética um tipo superior de democracia)» [sublinhado nosso]diz Lénine.

Kautsky defendia a conciliação do proletariado com a burguesia ao criticar a dissolução da Constituinte. Mas foi a inutilidade dos esforços da política menchevique, em seis meses de revolução, de conciliar as duas classes, que afastou o proletariado dos mencheviques. As massas voltaram por isso as costas aos mencheviques e socialistas-revolucionários, à direção pequeno-burguesa, e passaram para o lado dos  bolcheviques, dando-lhes a maioria no 5.º Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, a 04.07.1918.

Perante a pequena-burguesia vacilante, o proletariado revolucionário não poderia agir de outro modo que não fosse exigir à Assembleia Constituinte que aceitasse a ditadura proletária. Caso contrário, vencê-la-iam, e venceram-na, por via revolucionária.

 

6. A Constituição Soviética

A partir das críticas de Kautsky à constituição soviética, elaborada no verão de 1918, menos de um ano após a revolução, Lénine arrasa as conceções burguesas de legalidade e de democracia, a sua hipocrisia, e sublinha o papel material da luta de classes.

Kautsky critica a Constituição porque esta retirava o direito de voto aos exploradores – aqueles que «empregam operários assalariados com objetivos de lucro» – o que para si era uma arbitrariedade. Tal decorria da aguda luta entre burguesia e proletariado na revolução socialista (não sendo um traço distintivo da ditadura do proletariado, diz Lénine), uma vez que a burguesia e todos os partidos burgueses e pequeno-burgueses tinham assumido politicamente colocar-se na posição da contrarrevolução, tendo sido expulsos dos sovietes enquanto partidos.

«Se os Sovietes, depois de um ano de «prática» dos Sovietes, privaram os exploradores do direito de voto, isto quer dizer que estes Sovietes são de facto organizações das massas oprimidas, e não dos sociais-imperialistas nem dos sociais-pacifistas vendidos à burguesia. Se estes Sovietes retiraram aos exploradores o direito de voto, isto quer dizer que os Sovietes não são órgãos de conciliação pequeno-burguesa com os capitalistas, não são órgãos de charlatanice parlamentar (dos KautskyLonguet e MacDonald), mas órgãos do proletariado verdadeiramente revolucionário, que conduz uma luta de vida ou de morte contra os exploradores», diz Lénine.

Kautsky defendia os interesses destes, colocava-se num ponto de vista burguês face à revolução, fazendo-se passar por amigo dos trabalhadores. Chegava a afirmar que, se os exploradores tivessem direito de voto, se «reconciliariam mais depressa com o seu destino». Isto no contexto de luta de morte da burguesia contra o proletariado em que esta recorria às armas e à guerra civil.

Lénine denunciava-o como um político burguês que defendia os métodos da luta política parlamentar, próprias de uma situação não revolucionária ou de democracia burguesa, o legalismo burguês, enquanto eclodia e se desenvolvia a revolução socialista. Tornara-se, portanto, um renegado.

Lénine arrasa o conceito de democracia «pura» de Kautsky, atribuindo-lhe os seus conteúdos de classe, afirmando que a democracia atual é a ditadura da burguesia sobre os operários e que a democracia proletária leva à participação das grandes massas na condução política dos seus destinos, o que se materializava nos sovietes, que «não eram órgãos de conciliação pequeno-burguesa com os capitalistas», e no Estado operário.

Apontava ainda ao proletariado o caminho face à democracia burguesa: alargá-la o mais possível para preparar as massas para derrubá-la pela revolução.

 

7. Que é o Internacionalismo?

No contexto do início da I Guerra Mundial, os bolcheviques defendiam uma paz imediata e a todo o custo. Assumiam uma posição internacionalista ao lado do proletariado de todo o mundo, na Europa em concreto, uma vez que se tratava de uma guerra entre dois blocos imperialistas pela partilha do mundo, com a qual os trabalhadores e os povos só teriam a perder. Os mencheviques e Kaustky, na linha da II Internacional, defendiam que cada país deveria ter os seus exércitos a postos em caso de invasão e acusavam os bolcheviques de desorganizar o exército russo com a sua propaganda contra a guerra. A este propósito, Lénine aborda três questões fundamentais: a posição internacionalista dos revolucionários, o caráter de classe das guerrasa diferença entre reformismo e revolução.

Kautsky e os mencheviques, sobre a questão da paz e da guerra, num contexto em que se desenhava a possibilidade da revolução num conjunto de países europeus, assumiam a defesa do “interesse nacional”, da “defesa da pátria”, isto é, abandonavam os interesses da classe operária em geral e a dos seus países em favor da burguesia dos respetivos países. E Lénine afirmava: «Politicamente é substituir o internacionalismo pelo nacionalismo pequeno-burguês e passar para o lado do reformismo, renegar a revolução» e acusava-os de completa confusão na questão da defesa da pátria.

Lénine desmascara Kautsky e os mencheviques, acusa-os de enganarem os operários, de os amarrarem ao carro dos imperialistas e afirma que os juízos políticos devem assentar na análise da realidade de classe, nos atos, na ação e não em palavras de ordem (como as deles) que em nada transformam a realidade. Diz que o proletariado luta pelo derrubamento da burguesia imperialista e a «pequena-burguesia pelo “aperfeiçoamento” reformista do imperialismo, pela adaptação a ele, submetendo-se a ele»; a sua tática consiste em «resolver miudezas», deixando intactas as bases da guerra imperialista.

Os kautskistas, ao reconhecerem que o socialismo é a favor da autodeterminação e da liberdade das nações, pensam que tal afirmação acolhe as suas posições reformistas. Lénine, reafirmando que o socialismo é contra a violência sobre as nações e os homens em geral, distingue a violência reacionária da violência revolucionária e afirma que um marxista não pode aceitar a violência «em geral». Aponta mesmo o caráter de classe da guerra, reafirmando que aquela era uma guerra imperialista. «Defender a pátria» no contexto da guerra imperialista era próprio dos filisteus nacionalistas e não dos revolucionários internacionalistas porque nesta atitude «desaparece a luta revolucionária da guerra do operário contra o capital, […] a apreciação de toda a guerra no seu conjunto [o ponto de vista da burguesia e o ponto de vista do proletariado] e fica um nacionalismo miserável […]. O caráter da guerra depende da classe que a conduz e de qual a política que ela serve.

Sublinha Lénine que, se alguém que se afirma socialista, defender o seu país contra o inimigo sem ter em conta o caráter de classe da guerra que se trava, sem pensar nas ligações internacionais que tornam a guerra imperialista, se coloca ao lado da burguesia nacional, da sua burguesia, a qual constitui um elo na cadeia de rapina imperialista. Se uma guerra é imperialista e reacionária qualquer burguesia, mesmo a de um pequeno país, se torna cúmplice na rapina.

Portanto, «a tarefa de um representante do proletariado internacional é preparar a revolução proletária mundial, como única salvação dos horrores da matança mundial». Isto é ser internacionalista.

Em outubro de 1918, estava criada na Europa uma situação revolucionária, era expectável que vários países europeus iniciassem esse processo. A constatação de que se vivia uma situação revolucionária baseava-se em dois fatores: a fome e a ruína criadas pela guerra, e a cisão dos partidos socialistas apodrecidos, cujos chefes eram abandonados pelas massas proletárias à medida em que se aproximavam dos chefes revolucionários. Lénine relembra que a tática do proletariado é diversa consoante se viva uma situação revolucionária ou não. Não o sendo, o marxista revolucionário, diferentemente do que faz pequeno-burguês e filisteu, deve «saber pregar às massas ignorantes a necessidade da revolução, demonstrar a sua inevitabilidade, explicar a sua utilidade para o povo, preparar para ela o proletariado e todas as massas trabalhadoras exploradas».

Kautsky e outros dirigentes social-democratas traem esse movimento, passam, para o lado da burguesia e Lénine acusa-os de terem agido, «de factopara cortar o caminho aos instintos e aspirações revolucionárias sempre latentes na profundeza da massa de uma classe oprimida», e de terem tentado «extinguir o espírito revolucionário em vez de o apoiar e desenvolver». Os espartaquistas alemães apelam aos operários a que se livrem daqueles dirigentes e se ergam apesar deles, sem eles e por cima deles rumo à revolução.

A crítica de Kautsky e seus amigos à tática dos bolcheviques centrava-se no facto – e a crítica dessa posição é o eixo fundamental de todo o texto – de, na sua opinião, estes terem contado infundadamente com a revolução em vários países europeus. Lénine explicita que a tática dos bolcheviques era a única correta porque reconhecia a situação revolucionária da Europa, ao contrário de Kausky e seus semelhantes, que a traíram. Essa tática, além de assentar nessa análise concreta, era a única internacionalista e, Lénine, numa abordagem notável da dialética entre marcos nacionais/marcos internacionalistas da luta, definiu-a como aquela que «fazia o máximo daquilo que era realizável num só país para desenvolver, apoiar e despertar a revolução em todos os países».

A tática bolchevique foi um êxito porque se tornara a tática mundial, porque tinha aplicado o golpe mortal na apodrecida II Internacional e criado as bases ideológicas e táticas da III, tendo popularizado no mundo a ideia da «ditadura do proletariado» [aspas de Lénine] e servido de modelo de tática para todos. O poder soviético dos operários e camponeses pobres tinha mostrado, pelo menos durante um ano, ter sido capaz de conservar o poder dos trabalhadores contra toda a burguesia mundial. Mesmo que a Revolução de Outubro viesse a ser esmagada, «a tática bolchevique teria prestado um enorme serviço ao socialismo e teria apoiado o crescimento da invencível revolução mundial».

8. Servilismo perante a burguesia, sob a aparência de «análise económica»

Os mencheviques, antes de 1905, consideravam que a revolução russa seria burguesa e nada mais acrescentavam a essa estratégia. Lénine considerava que esta era uma perspetiva burguesa, a qual aspira a transformar o Estado de modo reformista e não revolucionariamente e define então as tarefas e as alianças de classe a estabelecer pela classe operária nas duas revoluções distintas: uma, a revolução burguesa, etapa necessária e a outra, a revolução socialista. Na primeira, a classe operária atrai a si o campesinato em geral (pequeno e médio), neutraliza a burguesia liberal e destrói o feudalismo e a monarquia. Importa sublinhar que a aliança da classe operária com o campesinato em geral determina o caráter burguês da primeira revolução porque a reprodução capitalista assenta nestes proprietários e na produção mercantil (produção de mercadorias para vender e obter lucro). Na revolução socialista, contra o capitalismo, o proletariado atrai a si todos os explorados e trabalhadores, os camponeses pobres, neutraliza o médio campesinato e derruba a burguesia.

Lénine acentua que entre a revolução democrática burguesa (nas condições da Rússia no início do século XX) e a revolução socialista não existe uma «muralha da China». O caminho da revolução será determinado apenas pelo grau de preparação do proletariado e o estado da sua aliança com os camponeses pobres.

O poder estatal revolucionário definido no socialismo pelos sovietes (recorde-se que os sovietes já vinham das tentativas revolucionárias de 1905) permitiu retirar importantes lições políticas e ideológicas para o proletariado em geral. A verificação de que a pequena-burguesia é vacilante entre a burguesia e o proletariado pelas suas condições económicas; de que é necessário, no campo, dividir os camponeses pobres dos camponeses ricos, demonstrar a incompatibilidade dos seus interesses, aliando os primeiros ao proletariado; de que as massas, pela sua própria experiência é que aprendem (pela satisfação ou não dos seus interesses) onde estão os revolucionários e os contrarrevolucionários, no caso representados por parte dos pequenos burgueses socialistas-revolucionários e os mencheviques, afastados depois dos sovietes pelas massas (o partido único tem aqui a sua explicação). Com isto, Lénine afirma que a Constituição soviética resultou da luta de classes, à medida em que as condições de classe evoluíam e amadureciam.

De seguida, Lénine debruça-se sobre as teses de Kautsy quanto à propriedade da terra, a política operária em relação aos camponeses e a tática marxista revolucionária em relação às alianças de classe no campo.

As primeiras leis do poder soviético sobre a posse da terra foram a sua nacionalização e a declaração do seu usufruto igualitário. A nacionalização da terra não era uma medida socialista, mas pequeno-burguesa, uma medida que fazia levar até às últimas consequências a revolução democrática – o usufruto igualitário da terra. A palavra de ordem socialista seria a do trabalho coletivo da terra. Contudo, o ideal que levou os pequenos camponeses a colocar-se ao lado da revolução foi esse usufruto igualitário. Os bolcheviques cumpriram escrupulosamente o seu compromisso e trabalharam com paciência nos campos, levando os camponeses a compreender as limitações dessa solução para o desenvolvimento das forças produtivas e passarem à produção socialista desenvolvida. Mostrou-se, pois, necessário e justo esse “compasso de espera” proporcionado pela ditadura do proletariado ao aliado mais atrasado, mas que, também, mais facilmente levava ao objetivo final do trabalho coletivo da terra.

Com estes dados históricos objetivos, Lénine retira a seguinte conclusão: «Com o campesinato até ao fim da revolução democrática burguesa; com os camponeses pobres, a parte proletária e semiproletária do campesinato, avante para a revolução socialista».

Insistindo, Lénine desmascara aqueles que, como Kautsky, pretendiam estabelecer a conciliação dos camponeses (todos) com os latifundiários, através da utopia reacionária da igualdade pequeno-burguesa, em vez do derrubamento revolucionário dos latifúndios pelos camponeses e defende a conceção bolchevique que distingue a revolução democrática burguesa da socialista: levando até ao fim a primeira para abrir a porta para passar à segunda. [Muito importante para se compreender o que são duas revoluções distintas].

Só depois do amadurecimento da oposição de classe entre camponeses pobres e kulaques a revolução pôde avançar de revolução democrática burguesa para a revolução socialista. Em período anterior, a pequena-burguesia (mencheviques e socialistas revolucionários) tinha-se adiantado no comando do processo, designadamente dentro dos sovietes. A esse propósito, Lénine faz duas importantes observações. A primeira, sobre a «democracia», que Kautsky aborda do ponto de vista burguês. Lénine afirma que os sovietes constituem um tipo de democratismo infinitamente superior à «democracia» de Kautsky, porque arrasta para a política a massa dos operários e camponeses. A segunda, sobre o papel da pequena-burguesia (nela o pequeno produtor camponês) na revolução, observando que esta vacila inevitável e constantemente entre a ditadura da burguesia e a ditadura do proletariado devido às características fundamentais da sua situação económica.

Foi na vida e na luta política que os camponeses pobres verificaram as suas incompatibilidades com a burguesia rural. Nesta luta, a pequena burguesia dividiu-se: uma parte passou-se para a contrarrevolução e a outra colocou-se ao lado do proletariado.

«(…) o proletariado da Rússia passou definitivamente à revolução socialista quando conseguiu cindir o campo, atrair a si os seus proletários e semiproletários, uni-los contra os Kulaques e a burguesia, incluindo a burguesia camponesa

Diz Lénine:

«Tudo está em que o Estado burguês, que exerce a ditadura da burguesia por meio de república democrática, não pode reconhecer perante o povo que serve a burguesia, não pode dizer a verdade, é obrigado a ser hipócrita. Mas o Estado do tipo da Comuna, o Estado soviético, diz aberta e francamente a verdade ao povo, declarando que é a ditadura do proletariado e do campesinato pobre, atraindo a si precisamente com esta verdade dezenas e dezenas de milhões de novos cidadãos, embrutecidos sob qualquer república democrática, que são arrastados para a política, para a democracia, para a administração do Estado, pelos Sovietes. A República Soviética envia para o campo destacamentos de operários armados, em primeiro lugar os mais avançados, das capitais. Estes operários levam o socialismo ao campo, atraem para o seu lado os pobres, organizam-nos e esclarecem-nos, ajudam-nos a reprimir a resistência da burguesia.»

Anexo I– Teses sobre a Assembleia Constituinte

Lénine diz que os bolcheviques introduziram a Assembleia Constituinte no seu programa porque, numa república burguesa, a Assembleia Constituinte é a forma superior de democratismo e porque Kerensky queria falsificar as eleições, mas sublinhou que a república soviética é uma forma de democratismo ainda mais elevada.

«Para a passagem do regime burguês ao socialista, para a ditadura do proletariado, a república dos Sovietes (de deputados operários, soldados e camponeses) é não só a forma de tipo mais elevado das instituições democráticas (comparada com a república burguesa habitual coroada por uma Assembleia Constituinte), mas também é a única forma capaz de assegurar a passagem menos dolorosa para o socialismo.» (tese 3).

Porém, as eleições para a Assembleia Constituinte, naquele contexto, excluíam a possibilidade de uma expressão justa da vontade do Povo em geral e das massas trabalhadoras. Em primeiro lugar, porque «sistema proporcional só pode dar uma ideia da vontade do povo quando as listas partidárias correspondem efetivamente à divisão real do povo nos agrupamentos partidários que se refletem nestas listas», e, em segundo lugar, porque o povo não podia conhecer ainda a importância e envergadura da revolução soviética.

A revolução passou por diversas fases, começando em outubro (calendário gregoriano) com a entrega, pelo sovietes, do poder aos bolcheviques. Seguiu-se um conturbado período de dois meses, em que a revolução atravessou uma fase burguesa, de conciliação, de reorganização das instituições, correspondente a um período já ultrapassado. Com o início da contrarrevolução, houve que passar a uma nova fase mais avançada, que tornou impossível a resolução das questões de forma mais democrática.

A Assembleia Constituinte, convocada segundo as listas dos partidos existentes antes da revolução proletária e camponesa, numa situação de domínio da burguesia, tinha deixado de refletir a nova relação de forças de classe, de refletir as conquistas da revolução e contrariava as decisões dos Congressos dos Sovietes de operários e camponeses. A palavra de ordem de «Todo o poder à Assembleia Constituinte» tinha passado a pertencer aos contrarrevolucionários. Lénine considera ser natural «que os interesses desta revolução estejam acima dos direitos formais da Assembleia Constituinte» do que decorria que a questão não podia ser resolvida de forma jurídico-formal, no quadro da democracia burguesa habitual.

Para a superação do problema, Lénine defende, então, o exercício do direito do povo a eleger novos membros da Assembleia Constituinte, a adesão desta Assembleia à convocação de novas eleições e o reconhecimento por ela, sem reservas, do novo poder soviético.

«Sem estas condições, a crise relacionada com a Assembleia Constituinte só pode ser resolvida por via revolucionária, pela via das medidas revolucionárias mais enérgicas, rápidas, firmes e decididas por parte do Poder Soviético contra a contrarrevolução democrata-constitucionalista-kaledinista, quaisquer que sejam as palavras de ordem e as instituições (mesmo a qualidade de membros da Assembleia Constituinte) com que se encubra esta contrarrevolução. Qualquer tentativa de atar as mãos do Poder Soviético nesta luta seria cumplicidade com a contrarrevolução».

Anexo II – Um novo livro de Vandervelde sobre o Estado

Lénine acusa Kautsky e Vandervelde de nada terem de marxistas por contrariarem toda a teoria de Marx e Engels sobre o que distingue o socialismo da sua caricatura burguesa: a) as tarefas da revolução, que são diferentes das das reformas b) o esclarecimento do papel do proletariado na destruição da escravatura assalariada, distinto do do proletariado das grandes potências, que partilha com a burguesia uma pequena parte do seu superlucro e supersaque imperialistas.

Kautsky e Vandervelde citam abundantemente Marx e Engels deturpando completamente o seu pensamento, expurgando-o de todas as ideias de que a burguesia não gosta, daquilo que distingue o revolucionário do reformista. Designadamente a questão maior da necessidade de destruição da máquina do Estado burguês, e não apenas da tomada do poder, ideia acrescentada por Marx e Engels ao Manifesto depois da experiência da Comuna.

Diz Lénine que o revolucionário proletário se distingue do liberal por, do ponto de vista teórico, analisar o novo significado estatal da Comuna (num momento histórico em que várias revoluções poderiam eclodir na Europa, necessitando absolutamente dessa experiência). Do ponto de vista prático, político, perante as massas, denunciar o papel dos traidores reformistas, explicar ao proletariado a necessidade de preparação para a revolução, fazer propaganda do socialismo, refutar os preconceitos burgueses contra a revolução.

Lénine ataca-os por introduzirem na sua teoria o desejo pequeno-burguês de substituir a revolução pelos «graus transitórios» na passagem do capitalismo ao socialismo. De seguida, faz afirmações capitais sobre o Estado, a revolução e a ditadura do proletariado.

«Que o grau transitório entre o Estado, órgão de dominação da classe dos capitalistas, e o Estado, órgão de dominação do proletariado, é precisamente a revolução, que consiste em derrubar a burguesia e quebrar, destruir a sua máquina de Estado, sobre isto os Kautsky e os Vandervelde nada dizem. Que a ditadura da burguesia deve ser substituída pela ditadura de uma classe, do proletariado, que aos «graus transitórios» da revolução se seguirão os «graus transitórios» da extinção gradual do Estado proletário, os Kautsky e os Vandervelde esbatem isto».

Se a democracia burguesa reprime a massa trabalhadora e explorada, a democracia proletária terá de reprimir a burguesiaO interesse de classe da burguesia, atrás da qual se arrastam estes pequenos burgueses, traidores ao marxismo, exige que se eluda esta questão, que se silencie ou se negue abertamente a necessidade dessa repressão.

Nota: Os sublinhados nas citações correspondem ao que, no texto de Lénine, na edição usada, é assinalado em itálico. O negrito é nosso.

Curso realizado em 12 de janeiro de 2019