Multipolaridade e BRICS, mais uma vez

Greg Godels

Os debates sobre “multipolaridade” e o significado de um agrupamento BRICS supostamente multipolar continuam. Num artigo de opinião na People’s Voice (Canadá) (“Multipolaridade, BRICS+ e a luta pela paz, cooperação e socialismo hoje”, de 16-30 de junho de 2024), o escritor Garrett Halas monta uma defesa sincera da multipolaridade e dos BRICS+ “como um passo positivo em direção ao socialismo”.

Halas junta-se a muitos outros ao imaginar toda a resistência do século XXI ao imperialismo dos EUA e ao imperialismo dos seus parceiros (em grande parte ex-Guerra Fria) como a mesma coisa que a resistência ao imperialismo em geral. Eles dividem o mundo entre os EUA e os seus amigos e aqueles que, de uma forma ou de outra, se opõem aos EUA. Às vezes, caracterizam isto como um conflito entre o Norte global e o Sul global. Às vezes, referem-se aos antagonistas imperialistas coletivamente como “o Ocidente”.

Do ponto de vista dos proponentes da multipolaridade, se os países que resistem aos EUA neutralizarem a dominação dos EUA e dos seus aliados, o mundo tornar-se-á pacífico e harmonioso. Na sua visão, não é o capitalismo que obstrui a paz duradoura, mas apenas as aspirações imperiais dos EUA. Assim, no futuro idealizado, vários estados cooperantes e amigáveis (polos) envolver-se-ão em transações económicas pacíficas e equitativas que todos concordam que serão mutuamente vantajosas – o que os líderes chineses chamam “ganha-ganha”. Se isso não for alcançado imediatamente, sê-lo-á em breve. Não é o socialismo que está no futuro?

A realidade é que, por mais importante que seja resistir à dominação e agressão dos EUA, o seu declínio ou derrota não acabará com o imperialismo, enquanto o capitalismo monopolista continuar a existir.

Na história do imperialismo da era moderna, o declínio de cada grande potência capitalista dominante gerou a ascensão de outra. À medida que um poder recua, outros se levantam e disputam o domínio global – essa é a lógica fundamental do imperialismo. E, com muita frequência, a guerra acontece.

  • CLASSE: Flagrantemente ausente da teoria da multipolaridade está o conceito de classe. Os defensores de um mundo multipolar não conseguem explicar o modo como as relações de classe – especificamente os interesses da classe trabalhadora – avançam com a existência de múltiplos polos capitalistas. Halas diz-nos que o “BRICS+ é uma coligação com um caráter de classe concreto enraizado no Sul global”, mas não nos diz o que é esse “caráter de classe concreto”. Esta é uma questão crítica e um problema importante, dado que Halas admite que “a maioria das nações BRICS+ são capitalistas”! Dos membros originais do BRICS, o capitalismo é inquestionavelmente o sistema económico dominante na Rússia, Índia, África do Sul e Brasil. Dos membros candidatos programados para entrar em 2024 – Argentina (provavelmente uma saída), Egito, Etiópia, Irão, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos – todos são capitalistas. A ideia de que os interesses da classe trabalhadora serão defendidos e o socialismo será promovido por esse grupo parece rebuscada.
  • CONFLITO DE CLASSES: A luta de classes – o motor da luta pelos avanços dos trabalhadores, pelo poder dos trabalhadores e pelo socialismo – foi sufocada pelos governos de quase todos os países BRICS e BRICS+. No Irão, por exemplo, o comunismo é ilegal e os comunistas foram executados em grande número. O comunismo também é ilegal na Arábia Saudita. Modi conduziu uma guerra de classes contra os agricultores da Índia. A classe trabalhadora da África do Sul viu o desemprego e a pobreza aumentarem sob o governo dececionante. Os trabalhadores egípcios trabalham sob um governo militar brutal. Como pode a sua entrada no BRICS prometer socialismo?
    • NORTE GLOBAL/SUL GLOBAL: Halas e os “multipolaristas” afirmam que a “contradição” que informa a multipolaridade é o choque entre o “norte global” e o “sul global” ou, paradoxalmente, o “Ocidente” e o resto do mundo. Além do facto de a divisão geográfica explicar pouco – além da imaginação das pessoas de esquerda da media social – dá a impressão de que a Austrália e a Nova Zelândia têm algo em comum com o empobrecido Burundi. Ou que a Sérvia e a Alemanha são parceiros ocidentais na exploração de pequenos países africanos. Existe, naturalmente, uma divisão entre países ricos e países pobres, entre exploradores e explorados. Historicamente, as linhas de falha mais nítidas foram definidas pelo colonialismo e o seu sucessor, o neocolonialismo. Mas as cartas imperialistas são baralhadas de tempos a tempos devido às desigualdades de recursos, ao desenvolvimento desigual ou a outras vantagens obtidas. Por exemplo, a Península Arábica já foi uma colónia dominada pelo Império Otomano.
      A dissolução desse império e os desenvolvimentos subsequentes levaram a uma Arábia Saudita emergente infundida com riqueza de recursos e no topo da hierarquia imperialista. Hoje, a Índia tem três das 20 maiores corporações da Ásia em valor de mercado, maiores do que todas as corporações japonesas, exceto a Toyota. O Tata Group da Índia tem uma capitalização de mercado de mais de US$ 380 mil milhões, com os seus tentáculos espalhados por 100 países. O editorial do Morning Star (Reino Unido) de 28 de junho informa-nos: “A ameaça da Tata Steel de fechar os altos-fornos em Port Talbot três meses antes, se o Unite prosseguir com a greve, é chantagem. A multinacional com sede na Índia não acredita que os metalúrgicos devam ter uma palavra a dizer sobre o futuro da fábrica… É ultrajante que o futuro da siderurgia britânica esteja ao sabor do capricho de um multimilionário num
      continente diferente.

Estados do BRICS e candidatos:BrasilRússiaÍndiaRepública Popular da ChinaÁfrica do Sul + Emirados Árabes UnidosEgitoEtiópiaIrão

  • DISSOCIAÇÃO: Halas sugere que o BRICS+ oferece uma oportunidade aos países de romperem com as estruturas financeiras internacionais capitalistas impostas após a Segunda Guerra Mundial e o domínio do dólar nas transações globais. Essa opção pode existir no futuro, mas é evidente que se destina a ser uma opção e não um substituto das estruturas e instrumentos de intercâmbio existentes. Recentemente, no final de junho deste ano, o primeiro-ministro da RPC, Li Qiang, disse que “devemos abrir amplamente as nossas mentes, trabalhar juntos, abandonar as formações de campos (e) opor-nos à dissociação …” [ênfase minha] É claro que o quadro das relações globais entre países – como imaginado pelo segundo líder mais proeminente da China Popular, Li, no “Verão” de Davos – não oferece nenhum desafio aos arranjos financeiros existentes ou ao domínio do dólar. O conflito antagónico entre a velha ordem e a nova ordem multipolar é mais uma fantasia na mente de alguma gente da esquerda do que um objetivo político real do país líder no BRICS.
  • ANTI-IMPERIALISMO: Halas gostaria que acreditássemos que o anti-imperialismo do século XX é a multipolaridade incorporada no BRICS. Ele cita os votos da ONU sobre o estatuto e a opressão contra a Palestina (previsivelmente vetados pelos EUA) como um exemplo de anti-imperialismo do “sul global”. Embora simbólica e não sem significado, dificilmente é a ação anti-imperialista de princípios que conhecemos em tempos anteriores. Vale a pena lembrar que a Arábia Saudita estava prestes a abandonar a Palestina para melhorar as relações com Israel antes de 7 de outubro. O Egito há muito tempo vendeu a causa da Palestina, assim como grande parte do mundo árabe. De acordo com a Al Jazeera, a Índia está atualmente a vender abastecimentos militares a Israel. A sinalização de virtude nos fóruns da ONU não substitui a solidariedade concreta e material.
  • CHINA: Este não é o lugar apropriado para debater se a República Popular da China é um país socialista, o jogo de salão favorito da esquerda euro-americana. No entanto, vale a pena afirmar que – como o único país socialista autoproclamado atualmente no BRICS – a RPC não afirma estar a defender, a encorajar ou a ajudar materialmente a luta pelo socialismo fora da China. Ao contrário da antiga União Soviética, a RPC não prioriza ou privilegia investimentos ou apoio material aos países que embarcam no caminho socialista. A palavra “socialismo” está amplamente ausente das suas declarações de política externa. Embora a liderança chinesa defenda a sua perspetiva como “socialismo com características chinesas”, ela não apoia comprovadamente o “socialismo com as características nacionais de qualquer outro país”. No entanto, alguma gente na esquerda vê a multipolaridade e o BRICS amplamente capitalista como um caminho para o socialismo para todos os outros.
  • JÁ VIMOS ISTO ANTES: Na década de 1960, era comum que a esquerda na Europa e nos EUA perdesse a esperança no potencial revolucionário das classes trabalhadoras. Onde os movimentos da classe trabalhadora na Europa se alinharam com os Partidos Comunistas, eles comprometeram-se totalmente com um caminho parlamentar gradualista para o socialismo. Uma Nova Esquerda anticomunista propôs um veículo diferente de mudança revolucionária: o Terceiro Mundo. Na linguagem comum da época, o Terceiro Mundo era as ex-colónias recém-emergentes que não estavam nem no campo dos EUA nem no campo soviético. De acordo com essa visão, a mudança revolucionária (e, em última análise), o socialismo, cresceria a partir do caminho independente escolhido pelos líderes dessas nações emergentes. Mas, em vez disso, elas foram esmagadas pelo neocolonialismo das grandes potências capitalistas e absorvidos pelo mercado capitalista global, com poucas exceções.
  • E AINDA ANTES: Karl Kautsky, o principal teórico da Internacional Socialista, antecipou a multipolaridade em 1914, introduzindo um conceito que ele chamou “ultra-imperialismo”. Kautsky acreditava que o imperialismo e a guerra das grandes potências não tinham futuro. O sistema imperialista iria, necessariamente, estabilizar e, devido ao declínio das exportações de capital, “o imperialismo está a cavar a sua própria sepultura… [A] política do imperialismo, portanto, não pode continuar por muito mais tempo.” Para Kautsky, uma etapa de “concentração” dos Estados capitalistas, comparável à cartelização das corporações, levará à harmonia interimperialista. Lenine rejeitou essa teoria imediatamente. Para uma discussão, clique aqui.

O imperialismo não é um sistema estável. Os participantes capitalistas estão sempre à procura de uma vantagem competitiva contra os seus rivais. Às vezes, acham útil ou necessário formar coligações ou alianças (muitas vezes temporárias) com outros para proteger ou promover os seus interesses. Uma dessas alianças foi forjada pelos EUA após a Segunda Guerra Mundial em oposição ao bloco socialista e aos movimentos de libertação nacional.

Após a queda da União Soviética, os EUA procuraram manter intactas as coligações existentes, selecionando ou planeando novos inimigos – a guerra às drogas, a guerra contra o terrorismo e as guerras de intervenção humanitária. Por trás desses laços políticos existia uma estrutura económica global estabelecida e dominada pelos EUA, privilegiando os EUA, mas considerada necessária para proteger o sistema capitalista.

Essa estrutura político-económica serviu bem ao capitalismo até ao grande colapso económico de 2007-2009 e as fissuras e fraturas que se seguiram na estrutura. A turbulência desencadeada pela crise diminuiu o ritmo de crescimento do comércio internacional e acelerou a competição por mercados. Desafiando ainda mais a estrutura centrada nos EUA estava a capacidade da China Popular de navegar pela crise sem dor. Onde anteriormente a classe dominante dos EUA via a RPC como uma oportunidade, ela começou a ver a China como um rival no sistema imperialista.

O mercado global pós-soviético – cimentado pelo chamado processo de “globalização” – começou a desfazer-se na esteira da instabilidade económica do século XX, especialmente o crash de 2007-2009. Em vez de defender o dogma existente do livre comércio, os países capitalistas foram atraídos pelo protecionismo e pelo nacionalismo económico.

Começando no governo Trump e acelerando durante o governo Biden, os EUA travaram uma guerra de tarifas e sanções contra concorrentes económicos. O domínio dos EUA nas instituições financeiras internacionais e a dependência quase universal do dólar americano deram aos líderes dos EUA ainda mais armas nessa competição.

O “pivô” dos EUA para a China na sua postura de defesa e da sua crescente hostilidade à Rússia foram reflexos da sua perda de terreno para o crescente poder económico da RPC e o domínio da Rússia nos mercados de energia da Eurásia.

Compreensivelmente, nesta nova era de nacionalismo económico, a Rússia, a China, a principal potência do subcontinente, a Índia, a maior potência económica da África, a África do Sul e a maior economia da América Latina, o Brasil, procurariam combater a concorrência agressiva dos EUA e da UE. A era da cooperação mútua estava a terminar e a era de intensa rivalidade e interesse nacional estava a aparecer. Foi nesse ambiente que o BRICS nasceu.

Foi uma resposta capitalista a um problema capitalista, não um caminho para o socialismo.

A principal tarefa dos comunistas e progressistas não é tomar partido, mas lutar para garantir que essas fraturas e atritos não explodam em guerra.

https://mltoday.com/multipolarity-and-brics-once-more/; 29.07.2024

Fotos:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:BRICS.svg