Raúl Martínez, membro do Burô Político do Partido Comunista dos Trabalhadores da Espanha (PCTE)
A longa viagem do eurocomunismo:
No dia 13 de janeiro de 2020 constituiu-se o primeiro governo de coalizão desde a II República, do qual formam parte os ministros do PSOE e a coalizão Unidas Podemos, da qual formam parte, por sua vez, a Esquerda Unida e o Partido Comunista da Espanha. Com isso, dois militantes do PCE passam a ocupar o Conselho de Ministros: a ministra do trabalho, Yolanda Díaz, e o ministro do consumo, Alberto Garzón.
A longa viagem empreendida pela direção revisionista do PCE, encabeçada por Santiago Carrillo, chega a seu fim. O objetivo traçado pelo eurocomunismo foi cumprido. Estão agora no governo. Chegou a hora da verdade, a hora que a prática confirme, ou não, a tese que outrora conduziu a direção comunista espanhola ao abandono de toda estratégia revolucionária, abrindo uma crise no movimento comunista que perdura até hoje.
O Burô Político do PCTE se pronunciou publicamente sobre o novo governo de coalizão. Em nossa resolução, advertimos que esse governo não faria outra coisa além de gerir a exploração capitalista. Advertimos sobre as falsas ilusões que importantes setores do movimento operário estavam semeando, com base em uma série de propostas simbólicas. Convidamos a não depositar nem um pingo de confiança no governo social-democrata, que chegava para conter a mobilização das massas, frente a um incipiente estalar de uma nova crise capitalista.
Em síntese, frente à gestão social-democrata do capitalismo, o PCTE reafirmava seu compromisso em preservar a independência da classe operária, convidando os trabalhadores a dar passos decisivos fortalecendo o Partido Comunista e acumulando forças em torno de uma estratégia insurrecional.
O trabalho atual se inscreve precisamente nesta luta. Como veremos mais à frente, muitos dos argumentos utilizados pelos defensores da estratégia de gestão capitalista se baseiam em particularidades nacionais, algumas das quais seriam compartilhadas com outros países do sul da Europa e justificariam seguir uma via própria.
Balanço de seis meses de gestão capitalista:
A conformação do governo de coalizão e seus primeiros meses de gestão se desenvolveram no início de uma nova crise de superprodução e superacumulação de capital. Uma crise que não foi provocada pela pandemia do Covid-19. Ao nosso juízo, aqueles que explicam a crise reduzindo suas causas à pandemia pretendem exonerar o capitalismo. Ocultam interessadamente que a origem da crise se encontra nas próprias contradições que atravessam o capitalismo e não em fatores externos ou em uma ou outra forma de gestão. As decisões adotadas para fazer frente à pandemia aceleraram uma nova crise econômica que vinha se gestando desde o ano de 2014, para a qual, nós, os comunistas vínhamos alertando.
O governo de coalizão respondeu à crise com a consigna de que, desta vez, “ninguém vai ficar para trás”. Com isso, buscam se diferenciar da forma com que se geriu a crise capitalista de 2008-2014. O problema, de acordo com essa análise, não está no próprio capitalismo, mas no neoliberalismo. De tal forma que o programa social-democrata de governo permitirá que os trabalhadores não paguem pela crise.
Oculta-se interessadamente que a primeira fase da crise anterior também foi gerida por um governo social-democrata. Tratam de responsabilizar exclusivamente a gestão neoliberal pelas consequências da crise, e de evitar que se estabeleçam paralelismos entre as medidas adotadas pelo Governo de Zapatero (PSOE) e as que estão sendo colocadas em prática atualmente.
O discurso da social-democracia se apoia em um conjunto de medidas simbólicas dirigidas a negar a evidência de que no marco do capitalismo serão novamente os trabalhadores que pagarão as consequências da crise. Como reiteramos no PCTE, uma coisa são as declarações públicas do governo, outra as medidas que se publicam no Boletim Oficial de Estado e, finalmente, a realidade, matizada pelo que está acontecendo nos locais de trabalho e nos bairros populares. A distância entre a propaganda social-democrata e a realidade tende a se converter em um abismo.
A última crise capitalista irrompeu na Espanha no ano de 2008. Desde então e até as eleições gerais de novembro de 2011, o governo espanhol esteve nas mãos do PSOE. Na primeira fase da crise, aquele governo respondeu com um programa de medidas tipicamente keynesianas: o Plano de Estímulo à Economia e ao Emprego – conhecido popularmente como Plano E – que, junto a uma outra série de medidas, se voltava a apoiar essencialmente o setor automotivo [automóvel (N.E)] e o turismo; e a chamada Estratégia de Economia Sustentável, com aprovação de uma Lei de Economia Sustentável que viria substituir o Plano E e a modernizar o sistema produtivo espanhol. Foram longe as políticas keynesianas daquele governo.
A partir de maio de 2010, essa mesma social-democracia percorreria as veredas da austeridade, substituindo a ortodoxia keynesiana pela neoliberal, impondo uma dura reforma trabalhista (junho – setembro de 2010) e aprovando a reforma do artigo 135 da Constituição, para incluir a assim chamada “regra de ouro fiscal” em agosto de 2011.
Assim, em meio a uma intensa contestação social, a social-democracia preparava o terreno para a chegada ao governo do Partido Popular nas eleições gerais celebradas em 20 de novembro de 2011, que colocaria nas mãos de Mariano Rajoy o bastão da alternância na gestão do capitalismo espanhol, que continuaria desferindo duros golpes contra a classe operária e contra os setores populares.
A retórica utilizada pelo atual governo é herdeira direta da empregada pelo PSOE de Zapatero até maio de 2011. De fato, novamente estamos na presença de planos de apoio específicos ao setor automotivo (o chamado Plano MOVES) e ao setor turístico. Novamente, se debate uma modernização do tecido produtivo espanhol de mãos dadas ao chamado “capitalismo verde”, desta vez através da Lei de Mudança Climática e Transição Energética.
Da mesma forma que aconteceu com a crise anterior, o governo da social-democracia tem colocado a serviço das empresas um enorme volume de recursos públicos. Desta vez, isso foi feito concedendo créditos subvencionados ou a juros baixíssimos aos capitalistas, e, muito especialmente, através de isenções e bonificações nas quotas empresariais da Seguridade [Segurança (N.E.)] Social.
Paralelamente, a legislação aprovada durante o Estado de Emergência declarado em 14 de março de 2020 inicia um processo de “modernização” das relações trabalhistas que serve aos interesses da burguesia. As forças políticas governamentais deixaram de prometer a revogação das reformas trabalhistas aprovadas durante a crise econômica anterior (em 2010 pelo PSOE, e em 2012 pelo PP) para desenvolver e utilizar massivamente os mecanismos implantados por essas reformas trabalhistas. Prometem um novo Estatuto dos Trabalhadores, que, ao que tudo indica, estará baseado no conceito sorrateiro de “flexissegurança”, aprofundando a individualização das relações de trabalho em detrimento da negociação coletiva, na “uberização” do mercado de trabalho.
Na verdade, o atual governo segue o caminho de facilitar maiores índices de exploração do trabalho pelo capital e, com isso, se intensifica o empobrecimento massivo dos trabalhadores. A desvalorização da mercadoria força de trabalho, cujo preço se situa em amplos setores abaixo de seu custo de reprodução, deu lugar a um rápido crescimento dos chamados “trabalhadores pobres”, ao que o governo respondeu aprovando a denominada Renda Mínima Vital, que vem complementar com recursos públicos as condições de miséria e fome impostas pela exploração capitalista.
A questão da extrema direita:
Esse processo de modernização capitalista se produz em condições políticas caracterizadas pela ascensão da extrema direita. O rápido crescimento do partido Vox, nascido como uma cisão do Partido Popular, com o qual compartilha muitos postulados, está sendo utilizado pelo PSOE e Unidas Podemos para prender o movimento operário em uma falsa disjuntiva: ou você está com o governo, ou favorece o avanço do fascismo.
O PCTE caracterizou, por sua vez, o ascenso do Vox como a resposta de um setor da burguesia à gestão da crise capitalista de 2008-2014 em um cenário marcado por uma forte disputa interburguesa, tanto no plano nacional como internacional. Vox representa o programa máximo da burguesia, mas não pode ser qualificado como uma força fascista porque, por enquanto, sua estratégia se inscreve nos marcos da democracia burguesa.
Evidentemente, isso não significa que em condições de intensificação da luta de classes essa estratégia não possa mudar para um programa de corte fascista. Mas o fato de que o discurso do Vox se baseie na defesa do franquismo e em um anticomunismo radical não supõe uma diferença substancial com as posições de outros partidos políticos da direita, como Alianza Popular ou a Unión de Centro Democrático de outrora, ou com o próprio Partido Popular nas últimas décadas.
O que é, sim, novidade é a resposta da social-democracia à Vox e à radicalização do Partido Popular:
- Fomentam a polarização entre social-democracia e a extrema-direita;
- Contrapondo-se à extrema-direita, apresentam o atual governo de coalizão como uma nova versão da Frente Popular;
- A presença de militantes do PCE no governo é justificada apelando à “tradição democrática” do PCE, isso é, ao eurocomunismo.
Perseguem, assim, uma série de objetivos. Em primeiro lugar, manter dividido o bloco de direita, de tal forma que o manejo da lei eleitoral os permita manter uma maioria parlamentar. Em segundo lugar, apanhar a classe operária na armadilha da “unidade de esquerda”. Finalmente, amputar a história da luta comunista na Espanha, como algo a ser defendido apenas na medida que o PCE abandonou o caminho revolucionário para se converter em uma força essencialmente social-democrata.
E, de novo, a “burguesia patriótica”:
O governo de coalizão, como não poderia ser diferente, é um governo capitalista. Mas, na medida em que apela ao voto das classes populares e está integrado por forças políticas da esquerda parlamentar, encobre seu caráter burguês apelando a uma falsa diferenciação no interior das classes dominantes.
Para isso, tanto os membros do PSOE como do Unidos Podemos vêm apelando por um acordo com os “empresários patriotas”. Assim, se apresenta ao movimento operário a existência de uma burguesia boa e uma burguesia má. Uma burguesia que estaria com a direita e a extrema direita, contrária à União Europeia e alinhada com Donald Trump, Bolsonaro, etc., herdeira da autarquia franquista, atrasada e reacionária, amante da fraude fiscal e da especulação…
Outro setor empresarial, o “patriótico”, estaria com o governo, seria favorável a um acordo com os sindicatos nos marcos do “diálogo social”, estaria disposto a empreender planos de modernização da economia espanhola elaborados pela União Europeia, seria favorável ao pagamento de impostos justos e de certa redistribuição da riqueza para estimular o consumo interno e, além do mais, seria cosmopolita e democrática.
A esse fantástico setor da burguesia apelaram diretamente tanto o presidente do governo (Pedro Sánchez), como o líder máximo do Podemos (Pablo Iglesias) ou o Coordenador da Izquierda Unida (Alberto Garzón).
Velhas receitas eurocomunistas no novo discurso social-democrata:
O discurso da social-democracia governante e de seus partidos não é original. De fato, no essencial, muitos dos postulados são herdeiros do discurso eurocomunista e reivindicam ativamente a prática eurocomunista durante os últimos anos do franquismo.
No momento presente se coloca ênfase em certa excepcionalidade espanhola que partiria de dois elementos essenciais: a persistência de um atraso secular no desenvolvimento das forças produtivas do país, fruto das condições particulares em que se produziu a transição do feudalismo ao capitalismo na Espanha; e, posteriormente, o fato de que na Espanha o regime fascista havia perdurado após a vitória antifascista dos povos na Segunda Guerra Mundial.
Sobre essa base, as forças revisionistas chegam à conclusão de que a revolução burguesa na Espanha não está concluída. Portanto, está justificada a aliança da classe trabalhadora com a “burguesia democrática” ou com a “burguesia patriótica” para completar essa revolução burguesa inconclusa e conquistar uma democracia burguesa homóloga à dos países do nosso entorno, justificando com isso a participação de algumas forças que se reivindicam comunistas no governo burguês.
Essas posições se expressaram recentemente com a reivindicação de novos Pactos de Moncloa. Esses pactos, firmados em 1977, permitiram à burguesia espanhola contar com um programa que, no econômico, subordinava a classe trabalhadora às medidas de que os capitalistas necessitavam para enfrentar a crise econômica e, no plano político, comprometiam definitivamente o Partido Comunista de Espanha na transição entre ditaduras, da ditadura fascista para a democracia burguesa. A classe trabalhadora perdia sua independência política, o movimento operário revolucionário era encurralado e as posições classistas no movimento sindical sofriam um duro golpe.
Diante da atual crise econômica, acelerada pela pandemia, o Presidente do Governo não titubeou em chamar novos Pactos de Moncloa, onde as forças políticas se comprometam no desenho e execução de uma série de medidas que permitam enfrentar a crise, empreendendo um processo de modernização do capitalismo espanhol.
Tal iniciativa resultou na criação da Comissão de Reconstrução Social e Econômica no Congresso dos Deputados, presidida pelo deputado Patxi López (PSOE) e cuja primeira vice-presidência é ostentada pelo Secretário Geral do PCE, representando o grupo confederal do Unidos Podemos.
A justificativa da participação de forças que se chamam comunistas, tanto no governo como na citada comissão, recorre aos principais argumentos empregados pelos eurocomunistas na segunda metade do século passado. Assim, frente às investidas da direita e da extrema direita, é reivindicada a particularidade do papel desempenhado pelos comunistas na Espanha: a “defesa de democracia”, a política de “reconciliação nacional”, a “paixão pela unidade”, etc.
Na verdade, estão sendo valorizadas as políticas eurocomunistas que conduziram ao abandono de toda estratégia revolucionária, à ruptura com o movimento comunista internacional e à traição aos países socialistas. Apela-se emotivamente à exemplar luta dos comunistas espanhóis contra o fascismo para sacrificar esse exemplo nos altares da democracia capitalista. Reivindica-se a mutação do histórico PCE em um partido social-democrata e, com isso, se justifica a participação no governo burguês.
Devem participar os comunistas nos governos burgueses?
O PCTE está realizando um esforço para analisar a história do movimento comunista na Espanha. Nossas análises conduzem a uma conclusão radicalmente oposta às posições que justificam a participação das forças comunistas nos governos burgueses. Ao nosso juízo, nem ao longo do século XX nem no momento presente existiram particularidades nacionais que justificassem a participação comunista em governos capitalistas.
Consideramos que a Internacional Comunista colocou demasiada ênfase nos elementos de atraso que estavam presentes na base econômica de alguns países, como a Espanha. Sobre essa base, se caracterizou mecanicamente o tipo de revolução em curso em cada país, ainda que afirmando que a classe operária deveria assumir um papel protagonista nos casos em que a revolução era qualificada como democrático-burguesa. Sobre a base de tais apreciações errôneas, a política de frentes populares e as condições criadas após a Segunda Guerra Mundial conduziram a um claro debilitamento da estratégia revolucionária em toda uma série de países, entre os quais se encontra a Espanha.
Apesar de que a nosso juízo seria errôneo subestimar os resíduos feudais nos anos 30 do século passado, afirmar hoje que tais resíduos estão presentes na formação capitalista espanhola e concluir daí a necessidade da participação comunista no governo capitalista, supõe abandonar completamente o marxismo. Espanha é um país imperialista em que a única revolução pendente é a socialista-comunista. E não existe nenhuma particularidade histórica que justifique teorizar uma via própria ao socialismo. Essas argumentações, na verdade, se dirigem a justificar a qualquer preço o abandono da estratégia revolucionária e a mutação das forças comunistas em partidos social-democratas.
Negar que a época das revoluções burguesas está concluída conduz ao escamoteamento da ditadura capitalista, com o pretexto de defender ou aprofundar a democracia burguesa. Por sua vez, justificar a participação no governo capitalista com a ameaça que representa o avanço da extrema-direita, tal como está acontecendo na Espanha, implica reduzir o programa da classe operária à defesa de uma das formas de dominação da burguesia, subordinando-se a ela ideológica, política e economicamente e ocultando as linhas de continuidade existentes entre uma e outra forma de dominação e, com isso, a tendência geral à reação na época imperialista.
Tampouco a lógica do mal menor justifica a participação das forças comunistas nos governos burgueses. O movimento comunista internacional acumula uma ampla experiência no que diz respeito à participação em governos capitalistas. Não existe um só caso em que a participação dos comunistas em tais governos tenha levado a um fortalecimento das posições da classe trabalhadora. Pelo contrário, essas experiências concluíram em todos os casos com o debilitamento das posições classistas, semeando falsas expectativas sobre o desenvolvimento gradual pela via parlamentar até o socialismo, e favorecendo a mutação das forças comunistas em social-democratas.
Frente a tais posições é necessário travar uma luta sem quartel, em todas as frentes. E é preciso fazê-lo de forma argumentada, ajudando os setores da classe operária que vêm caindo em armadilhas da lógica do mal menor, a avançar para posições mais revolucionárias. Desmascarar as medidas que o governo adota supostamente a favor dos setores populares, explicar pacientemente como essas medidas se inserem na lógica de modernização da exploração, contribuir para que a resposta operária frente à crise seja a mais massiva possível, ajudar para que se fortaleçam as posições classistas combativas no interior dos sindicatos, contribuir com a organização dos setores populares nos bairros e no movimento estudantil em institutos e universidades; são tarefas que conduzem ao fortalecimento do Partido Comunista como tarefa mais urgente do momento, agrupando forças classistas que vão compreendendo, com base na sua própria experiência, que a única saída para a classe operária, e a tarefa de nosso tempo, é a luta decidida pelo socialismo-comunismo.
* Imagem da responsabilidade da Iskra