O INVIOLÁVEL PRINCÍPIO DO INTERNACIONALISMO PROLETÁRIO

A situação na Venezuela, as recentes eleições presidenciais, a onda de manipulação política que reina na comunicação social e algumas tomadas de posição públicas oportunistas sobre este assunto justificam a perplexidade de marxistas-leninistas e democratas sinceros, que não dispõem de um fio condutor que explique e ligue os recentes acontecimentos com o processo histórico em que se inserem.

Mas ainda bem que, a propósito de uma crítica do PCV a uma tomada de posição em Portugal acerca dos resultados eleitorais, a comunicação social tenha descoberto que existe um Partido comunista na Venezuela, sem medo de assumir as suas posições revolucionárias.

A subida de Chávez ao poder

Chávez chega ao poder com uma intenção patriótica e libertadora declarada, com o objetivo de livrar o seu país do imperialismo americano, inspirado nas ideias de Simón Bolívar, revolucionário latino-americano que lutava pela libertação dos países sul-americanos do colonialismo espanhol.

De imediato conseguiu o apoio do povo venezuelano e atraiu o ódio do seu vizinho do norte e grande potência, os EUA, tanto mais que o seu país possui uma das maiores jazidas de petróleo do mundo.

Depois de ter sido preso retomou o poder com o apoio dos militares que compartilhavam os seus anseios, obteve uma vitória eleitoral em 1999 e iniciou-se o processo que foi denominado “revolução bolivariana”.

Hugo Chávez, durante seu governo na Venezuela, promoveu uma série de nacionalizações em setores estratégicos da economia, como a Petróleo da Venezuela, empresas siderúrgicas, de telecomunicações, do setor da eletricidade e do setor alimentar.

No plano social, tomou medidas para generalizar o direito à educação e à saúde, trabalhou para erradicar o analfabetismo, procurou redistribuir as receitas do petróleo a favor dos mais pobres e elevar as suas condições de vida

Como não podia deixar de ser o imperialismo norteamericano desencadeou as suas forças para boicotar um projeto que se pretendia de independência nacional, o que significava a soberania nacional sobre um dos mais importantes ativos da Venezuela, o petróleo, e a satisfação de necessidades básicas da população. Os EUA são responsáveis pelos boicotes ao desenvolvimento independente da Venezuela e pela pobreza criada na população. Mas o caminho que poderia levar à superação das dificuldades e proposto pelo PCV a Chávez e a Maduro, apelando à unidade dos verdadeiros democratas e patriotas, esse, a “revolução bolivariana” não o quis percorrer, preferindo ceder às exigências da pequena-burguesia e da burguesia nacionais e do imperialismo.

A natureza da “Revolução bolivariana”

O camarada Carlos Aquino, membro da Comissão Política do CC do PCV, procurou deixar clara a natureza da “revolução Bolivariana” na opinião do PCV. Disse ele:

«É preciso ter claro que o problema do poder não se resolveu na Venezuela; a classe operária não tomou o poder no nosso país, assim a estrutura do sistema burguês não foi modificada – uma estrutura que no nosso caso se agrava por ser um modelo de capitalismo rentista e dependente, improdutivo, monoprodutor e multi-importador, e em consequência um Estado altamente ineficiente, corrompido e burocratizado».1

Os objetivos da “revolução bolivariana” na Venezuela, assim como outros processos progressistas e democráticos na América Latina, não eram, portanto, socialistas no sentido do socialismo científico marxista-leninista.

« Vários destes “processos”autodenominaram-se “revolução”, como no caso da Venezuela, implantando  importantes reformas, programas e políticas sociais em benefício das grandes maiorias historicamente excluídas, porém, vão chegando ao seu teto, ao limite que lhes permite o próprio sistema, na medida em que não se propuseram nem amadureceram para o objetivo de mudar revolucionariamente as relações de produção capitalistas, desperdiçando um tremendo acumular de ânsia popular que já está a converter-se em deceção, frustração e desmotivação, além de – nesses casos como o venezuelano – promover um grande desprestígio dos termos como “revolução” e “socialismo”, quando o que está em crise é o modelo de acumulação capitalista rentista e dependente».2

Chávez desenvolveu a sua teorização do processo em torno do conceito do chamado “socialismo do século XXI”, elaborado pela primeira vez pelo “sociólogo” alemão Heinz Dieterich em 1996, popularizado a partir do ano 2000 entre forças democráticas e até revolucionárias pequeno-burguesas na América Latina, pretendendo que o socialismo nesse continente poderia ser construído sem necessidade da revolução proletária, da ditadura da classe operária em aliança com o campesinato pobre, força de grande importância naquele continente, e menosprezando a necessidade da existência de um partido de vanguarda munido da teoria marxista-leninista.

A falta de compreensão ou a recusa do papel de vanguarda do proletariado e do seu partido, da necessidade de tomar o poder político e quebrar as relações de produção capitalistas, a ilusão do “socialismo do século XXI”, levaram à derrota muitas experiências libertadoras, à absorção das reformas pela burguesia.

Desde cedo, Chávez pretendeu a dissolução do PCV no seu partido, o PSUV, pretendendo privá-lo da sua identidade e independência de classe, coisa que o PCV decidiu rejeitar, decisão cuja importância a vida mostra hoje à saciedade.

Em dezembro de 2006, Hugo Chávez, menos de duas semanas após a reeleição presidencial na qual ficou evidente estar no mais alto grau de sua popularidade e da sua influência de massas, propôs a constituição do “partido único” que deveria ser integrado por todos os partidos do processo bolivariano.3

No início da “revolução bolivariana” existiu um organismo político de coordenação entre o PSUV/Governo e o PCV, onde este fazia as suas propostas de medidas de importância para os trabalhadores e o povo e procurava influenciar o rumo dos acontecimentos, alertava para os perigos, combatia o que lhe parecia ilusório, etc., dando uma contribuição altamente positiva e necessária para o êxito da revolução bolivariana. As suas propostas não foram ouvidas, a colaboração do PCV na revolução bolivariana foi afastada e desprezada. De resto, os governos venezuelanos ainda com Chávez tinham uma composição política e social com a participação de forças e partidos burgueses e pequeno-burgueses anticomunistas que não garantia a possibilidade do cumprimento dos objetivos traçados e das expectativas do povo.

Fruto das contradições políticas e económicas, foi crescendo o poder de novas camadas burguesas entretanto formadas.

Após a morte de Chávez a Venezuela entrou numa nova fase

Cresceram desmesuradamente as pressões das classes burguesas internas – e do interior do próprio governo – e do imperialismo americano para a reversão das medidas tomadas. Uma grande parte parte do petróleo foi privatizada, cresceu a pobreza e a miséria entre o povo, fruto, por um lado do boicote económico americano para desacreditar e fazer perder apoio ao governo “socialista”, quer de medidas com sentido de classe da parte do governo para favorecer os interesses da burguesia venezuelana e estrangeira.

Em abril de 2017, o PCV caracterizava a situação:

«A República Bolivariana da Venezuela está ameaçada, uma vez mais, pelo desenvolvimento das ações de violência política de setores da extrema-direita executando um plano desestabilizador urdido pelo imperialismo dos Estados Unidos, com o objetivo de impor, pela força e pela chantagem, um governo ao serviço da sua hegemonia no continente, desarticulando os processos de libertação nacional iniciados na América Latina […]»4

e, dirigindo-se à classe operária e ao povo trabalhador, às forças armadas e a Nicolás Maduro, apelava:

«É necessário ativar sem mais demoras a ampla aliança anti-imperialista, com o objetivo de derrotar o plano terrorista e golpista. É necessária a ação conjunta e a articulação entre o governo, os partidos do Grande Polo Patriótico, as forças do movimento operário e popular e a oficialidade patriótica da FANB. É necessário um PLANO UNITÁRIO PATRIÓTICO E POPULAR para derrotar a direita terrorista e o imperialismo. Não o fazer é atuar com irresponsabilidade, não o fazer é, na prática, entregar-se.»5

Não se pode acusar o PCV de sectarismo ou de falta de empenhamento para salvar a situação que se desenrolava e continuou a desenrolar-se até aos dias de hoje. Quanto a Maduro e ao seu governo já podem ser acusados de ter mandado às urtigas estes apelos.

Em 2021, realiza-se no México uma conferência que reúne, de um lado o governo de Maduro e o PSUV e, do outro, Juan Guaidó e Henrique Capriles em que foi rubricado um memorando de entendimento denunciado pela Comissão Política do PCV:

«O memorando de entendimento do México tem como bases reais os prévios acordos económicos, com o objetivo de dar garantias aos capitais privados. Tanto o governo quanto a oposição de direita concordam com o atual ajuste económico, de conteúdo neoliberal, que impõe a política de liberalização de preços, a dolarização de facto da economia, a privatização de bens públicos, a devolução de empresas públicas e terras agrícolas ao capital privado e aos latifundiários, as políticas de flexibilização fiscal, a abertura ao capital privado do setor petrolífero, a política de destruição de salários e a desregulação das relações de trabalho. Assim como também concordam  com as importantes promessas ao capital privado nacional e estrangeiro de suculentos lucros com as Zonas Económicas Especiais e as expectativas de uma reforma da Lei dos Hidrocarbonetos com a qual se pretende privatizar o negócio do petróleo e reduzir a capacidade do Estado para captar a renda petrolífera6

Nos últimos anos, além da degradação das condições de vida que levaram à imigração de milhões de venezuelanos (e não foi por causa do “socialismo” do governo, foi por causa do boicote dos EUA e das medidas favoráveis ao capital que o PSUV tomou ) a liberdade política e de organização começaram a ser restringidas.

As atuais eleições presidenciais

Assim, foram presos trabalhadores que protestavam e reprimidos os sindicatos de classe organizados em torno da CUTV, os deputados do PCV no parlamento foram impedidos de falar, os tribunais “independentes” ao serviço do poder burguês de Maduro nomearam uma uma direção de provocadores com o nome de “conselho de administração ad hoc” para o PCV alguns dos quais nem membros do partido eram, proibiu-o, também através do sistema judicial “independente” de concorrer às eleições, de apresentar às eleições presidenciais os candidatos por ele indicados, apoderou-se do símbolo do galo vermelho do PCV e usou-o como seu na campanha eleitoral dizendo que o PCV apoiava a sua candidatura à presidência.

Mesmo não discutindo os resultados e a sua veracidade, só por estas razões as eleições não foram democráticas, porque os verdadeiros representantes dos trabalhadores sofreram duros boicotes à sua participação.

Uma parte da burguesia mais assanhada da Venezuela reclama a vitória nestas eleições, como é sabido. Ideologicamente, a burguesia venezuelana e ocidental, apresenta os “argumentos”, como sempre, de que está em jogo a “democracia”, que o “regime” de Maduro é ditatorial e inculca o sentimento pavloviano de que é um perigoso “esquerdista” – a catilinária do costume para tirar partido da situação, confundir os conceitos e atacar as ideias marxistas-leninistas em geral. Sublinhe-se: isto enquanto o partido comunista e os comunistas são perseguidos e o povo luta contra a miséria a que está votado, não por causa do “socialismo”, mas por causa do capitalismo a que Maduro não quer fazer frente e, pelo contrário encoraja.

Um conhecido jornalista num artigo em que se põe inteiramente ao lado de Maduro, afirmou recentemente:

«Vinte e três minutos após o fecho das urnas, a vice-presidente dos EUA, Kamala Harris […] publicou um tuíte admitindo que a extrema direita tinha perdido. Foi um sinal precoce de que os Estados Unidos — apesar de fazerem barulho sobre fraude eleitoral — queriam superar os seus aliados na extrema direita, encontrar uma maneira de normalizar as relações com o governo venezuelano e permitir que o petróleo fluísse para a Europa. Essa tendência do governo dos EUA frustrou a extrema direita, que se voltou para outras forças de extrema direita na América Latina […]7

Não há dúvida de que poderosas contradições se entrechocam na Venezuela, de que estamos perante um episódio da guerra interimperialista para decidir quem é que vai beneficiar das riquezas venezuelanas em matérias-primas e, em especial, do petróleo e obter vantagens geoestratégicas: os EUA ou a Rússia/China, que já se congratularam com a vitória de Maduro. A ser assim, as coisas tornam-se ainda mais complicadas. Há que sublinhar que a Venezuela tem dívidas enormes contraídas com a Rússia e a China e que este último país é o segundo maior comprador de petróleo venezuelano seguido pela Índia.

A Venezuela é de longe o maior beneficiário latino-americano de empréstimos de instituições financeiras de desenvolvimento da China — o Banco de Desenvolvimento da China e o Banco de Exportação e Importação da China. Os empréstimos da China ao governo e a empresas estatais da Venezuela ascendem a 59,2 mil milhões de dólares, quase o dobro dos empréstimos ao Brasil8

A dívida da Venezuela à Rússia foi calculada em 3,5 mil milhões de dólares americanos, cinco vezes mais do que o valor do empréstimo contraído pela Sérvia.9

Estamos a falar, juntamente com o Irão, também ele um forte aliado de Maduro, de países que integram os BRICS (a posição do Brasil é mais do que dúbia). E agora trata-se de saber se o capitalismo dos BRICS é melhor do que o capitalismo dos EUA e da UE. Trata-se também de saber se é na “multipolaridade” que o mundo vai ser salvo da fome, da guerra, da miséria e da exploração ou se apenas o socialismo que se desenvolve em direção ao comunismo pode alcançar esse objetivo. Trata-se de saber, por fim, se o proletariado se contenta com reformas do sistema ou se quer construir uma sociedade sem exploradores nem explorados.

No seu mais recente comunicado o PCV não tem dúvidas em afirmar que

«A atual crise política é uma manifestação violenta das características específicas da disputa histórica entre frações da burguesia nacional e mundial pelo controlo das rendas petrolíferas venezuelanas».10

A posição dos comunistas

Os comunistas não podem congratular-se com a reeleição de Maduro, a face visível do processo de recuperação capitalista do interesse do imperialismo. Maduro vai servir os interesses do imperialismo seja ele qual for, porque é o imperialismo que está na ofensiva e o povo até agora não tem tido forças para contrariar a evolução do processo, apesar de ter um partido que sabe apontar o caminho e está disposto a lutar pelo socialismo com os trabalhadores e o povo, ao mesmo tempo que defende a formação de um Governo de Emergência e Unidade Nacional.

Todas estas informações estão publicadas há muito tempo no sítio do PCV, Tribuna Popular, https://prensapcv.wordpress.com/, e circulam entre os partidos comunistas e operários. Muitos dos seus comunicados estão traduzidos em português e publicados em https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/., não se pode falar de falta de informação

Porém, uns partidos estão do lado dos trabalhadores e do povo venezuelano contra o imperialismo, prestam-lhes a solidariedade que se deve entre irmãos de classe, outros preferem apoiar Maduro, cujas políticas acima desmascarámos (não em toda a sua extensão).

Ainda antes das eleições presidenciais, o PCV afirmou:

«A esta altura, não é segredo para ninguém que o principal aliado da ofensiva total mantida pelo setor empresarial e patrões contra a classe trabalhadora venezuelana é o próprio presidente Maduro. No entanto, alguns preferem fingir com dissimulação que não perceberam que o PSUV-Governo se tornou o operador político mais eficaz do grande capital na Venezuela e que sua missão é preservar a todo custo os lucros da burguesia e, claro, os seus próprios negócios.»11

Não se pode iludir os trabalhadores e mentir-lhes sobre a natureza do processo em curso na Venezuela erigindo Maduro a herói do combate ao imperialismo.

Não se pode estar do lado de quem oprime o povo e persegue os comunistas e sindicalistas venezuelanos. Não se trata aqui da escolha do mal menor, mas de princípios éticos e da observância do inviolável princípio do internacionalismo proletário e do cumprimento dos objetivos estratégicos com vistas à tomada de poder pelo proletariado, porque ser internacionalista significa tomar partido pelo proletariado, independentemente da sua nacionalidade e, conforme diz o Manifesto Comunista, porque os comunistas representam sempre o interesse do movimento total.

Não podem estar ao lado da burguesia venezuelana, a revanchista, representada por Corina Machado ou a que está atualmente no poder, ao lado do capital dos EUA, da Rússia ou da China. Maduro não está a lutar contra o imperialismo americano em defesa da soberania do seu país, está a fazer de conta. É um papel que lhe serve para iludir o povo venezuelano e lançar a confusão entre os trabalhadores de todo o mundo.

Não se trata aqui de escolher entre Maduro ou Corina Machado, trata-se de escolher o lado dos pobres e dos explorados ou o lado dos interesses do capital, seja ele venezuelano, americano ou de qualquer outra grande potência. Essa luta trava-se sob uma bandeira própria, independente, de classe, não sob a bandeira alheia, a da burguesia.

Viva o internacionalismo proletário!

Viva a justa luta do PCV e do povo venezuelano!

ISKRA

1 https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/entrevista-a-carlos-aquino-do-partido-5501

2 https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/entrevista-a-carlos-aquino-do-partido-5501

3.https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/entrevista-a-carlos-aquino-do-partido-5501

4. https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/pcv-apelo-patriotico-e-3782

5.https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/pcv-apelo-patriotico-e-3782

6.https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/o-pacto-de-elites-consolida-se-no-158020

7. https://www.counterpunch.org/2024/07/31/the-venezuelan-people-stay-with-the-bolivarian-revolution/

8 https://asia.nikkei.com/Politics/International-relations/China-s-Venezuela-connection-A-warm-state-embrace-with-corporate-cold-feet

9. https://www.statista.com/statistics/1040766/international-funds-borrowed-from-russia-by-country/

10. https://www.idcommunism.com/2024/08/communist-party-of-venezuela-on-intra-bourgeois-conflict-in-venezuela-following-presidential-elections.html?spref=fb&fbclid=IwY2xjawEfQj5leHRuA2FlbQIxMQABHYc_ZfH701B72V9glOCasYjNNGu8pTsq24JBw0ClgAtaQ93EwdEleWKdOw_aem_RNruBhiBM1hQVnVR-J1tgg

https://www.brasil247.com/blog/marco-na-historia-da-revolucao-bolivariana