«Sem teoria revolucionária não há prática revolucionária» – Lénine

 

«Sem teoria revolucionária não há prática revolucionária» – Lénine

Partimos desta afirmação de Lénine para desenvolver o nosso tema: Filosofia, Ser e Consciência, Materialismo e Idealismo no âmbito da Iskra.

Filosofia

Desde que o trabalho transformou a espécie humana em homo sapiens sapiens que ele começou a tentar perceber e explicar o mundo criando sistemas de ideias. Esses sistemas começaram por ser metafísicos, religiosos. A partir do momento em que o desenvolvimento das forças produtivas o permitiu, o trabalho intelectual começou a separar-se do trabalho manual e surgiram os filósofos que elaboraram sistemas de ideias interpretativas e explicativas do mundo.

O termo filosofia, pela sua etimologia grega, significa amor pelo saber. Podemos definir o conceito abreviadamente como conceção geral do mundo. De qualquer modo, os homens elaboram sistemas de ideias não como um fim em si, mas com vista à satisfação dos seus interesses e necessidades, com o objetivo de saber como interagir com a natureza e utilizá-la em seu proveito. Na Grécia antiga a filosofia era um repositório de várias ciências: matemática, estudo da natureza, retórica, e até das artes. Foi desse tronco comum que cresceram e se desenvolveram os vários ramos da ciência.

Mas a filosofia continha e continua a conter também dimensões sociais e éticas, desenvolvendo ideias quanto às normas, por exemplo, pelas quais se devem reger uma sociedade e os homens entre si, discutindo também sistemas políticos. A filosofia é determinada por uma práxis e determina também e sempre uma práxis.

Diz Marx, na 8ª Tese sobre Feuerbach:

«A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e no compreender desta práxis». https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm

A filosofia reflete o estado do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção e contribui para o seu avanço ou retardamento no quadro da luta de classes. Numa sociedade de classes, os interesses de determinada classe são expressos numa filosofia de classe. A filosofia que se assume como não classista normalmente serve a classe no poder.

Na mesma obra, Marx afirmou que «Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo»*. https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm

A classe que pretende mudar o mundo tem de apropriar-se e desenvolver uma filosofia revolucionária. E essa filosofia é o materialismo dialético. Sem o materialismo dialético não é possível que o proletariado compreenda o mundo, conheça as leis do seu movimento e, armado com este conhecimento, saber como transformá-lo.

O materialismo dialético

Com Marx e Engels nasceu uma filosofia científica do proletariado, o materialismo dialético. Obviamente não surgiu do nada, mas da necessidade, num dado momento histórico, com o aparecimento da classe operária, de estudar o movimento social, descobrir as suas leis, partindo de ideias e sistemas filosóficos anteriormente existentes, como por exemplo de filósofos como Kant e Hegel, de cuja análise crítica se engendrou a nova filosofia.

O marxismo, além de colocar a filosofia em novas bases – científicas, não idealistas, não especulativas – determinou também que o seu exercício não ficasse confinado a um grupo social restrito, os pensadores, os filósofos, mas fosse apropriado pela classe operária como arma da sua emancipação.

A natureza científica do materialismo dialético decorre da sua conformidade com o que ensinam as ciências, constituindo uma conceção do mundo no seu conjunto capaz de assimilar e elaborar os dados científicos, de prever os fenómenos e de orientar a formulação hipóteses que impulsionam o desenvolvimento da(s) ciência(s). Engels afirmou que «o materialismo é obrigado a assumir um novo aspeto depois de cada nova e grande descoberta». O estudo das leis do movimento social é o materialismo histórico.

Ao longo de toda a história da filosofia, todos os sistemas de ideias tiveram sempre base no facto de o real se apresentar sob um aspeto material e um aspeto ideal. Isto é, todo o real é composto pela sua existência própria, objetos/fenómenos e o seu movimento e pela imagem que formamos deles no nosso pensamento, nas nossas ideias. Em cada sistema trata-se de responder à questão de saber qual deles determina, produz o outro. Esta oposição também se pode formular noutros termos: é o ser que determina a consciência, ou é a consciência que determina o ser? Os sistemas materialistas respondem que a matéria (o ser) determina a consciência, que a consciência provém do material. Os sistemas idealistas respondem o inverso: a ideia é anterior à consciência, o real existe como reflexo de uma ideia a anteriori (é neste pressuposto que se baseiam as religiões monoteístas). Esta discussão considera-se ser o problema fundamental da filosofia.

Platão, por exemplo, afirmava que a realidade era uma manifestação das Ideias puras, as quais estavam para a realidade como a sua sombra projetada nas paredes da caverna. Para Hegel a sociedade e a natureza eram apenas a encarnação do pensamento absoluto e universal existente por si mesmo. Mas também, desde a antiguidade clássica, existiram filósofos materialistas. Estes afirmavam simplesmente o primado do ser sobre a consciência e admitiam a existência de uma realidade fora da consciência do homem.

Marx e Engels vêm trazer novos desenvolvimentos filosóficos aplicando o método dialético às conceções materialistas, assim colocando a filosofia num patamar científico e superando todo o idealismo e várias outras formas de materialismo não científico.

O mundo existe fora da consciência do homem. O papel da prática

Caracteriza o materialismo marxista, em primeiro lugar, a consideração da materialidade do mundo, isto é, a existência de uma realidade material fora da consciência do homem, da sua representação mental da natureza. O mundo é material e os seus fenómenos são diferentes aspetos da matéria em movimento.

«A conceção materialista do mundo significa simplesmente a conceção da natureza tal como ela é, sem adicionamentos estranhos» diz Engels em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã.

Para o marxismo, o movimento é a propriedade fundamental da matéria. O universo é matéria em movimento. Este posicionamento filsófico ultrapassa estados anteriores do pensamento, historicamente inevitáveis, que fundamentavam a análise científica na base do estudo dos fenómenos numa perspetiva estática. Com Newton introduziu-se a perspetiva do movimento mecânico, mas desconheciam-se ainda outras formas de movimento da matéria como o calor, a eletricidade, o magnetismo, os processos químicos e biológicos. Os avanços científicos correlacionaram massa e energia, mas os posicionamentos idealistas continuam ainda a separar a matéria da energia concebendo-as como realidades distintas.

O universo é eterno e infinito, a matéria é indissolúvel e incriada e encontra-se em permanente movimento.

O ser determina a consciência

Para o materialismo marxista, a matéria é anterior à consciência. Enquanto os idealistas continuam ao longo dos séculos a afirmar que a realidade só existe no e pelo pensamento, insistem na existência de um espírito que comanda o universo, de um espírito ou princípio criador, insistem que a realidade tem origem na consciência, nas sensações que temos a partir dela, que o mundo é feito de imagens que só existem na nossa consciência. Num exemplo muito concreto do século XX, referiremos apenas o “existencialismo” de Sartre, que considera que a existência é a “consciência da minha existência” em determinada “circunstância”, circunstância essa que eu posso escolher livremente.

Em Materialismo e empiriocriticismo Lénine sublinha que a matéria é uma categoria que serve para designar a realidade objetiva dada ao homem nas suas sensações, que a copiam, a fotografam, a refletem sem que a sua existência esteja a elas subordinada.

Contudo, consciência não é matéria. É o produto do cérebro, ele próprio matéria também, o grau mais alto do desenvolvimento da matéria. Podemos dizer que existem dois graus do conhecimento: o conhecimento sensível, imediato, proveniente das sensações, e o conhecimento lógico, abstrato, elaborado pelo cérebro, que permite a formação dos conceitos. O conhecimento sensível abrange aspetos particulares do fenómeno, enquanto o conhecimento lógico permite apurar a interrelação dos fenómenos, a sua organização interna, apreender o seu movimento e deduzir as suas leis.

O pensamento chega ao conceito pela repetição da experiência. A “aprendizagem” dos sistemas computacionais faz-se da mesma forma: da repetição dos dados o computador extrai um padrão que lhe permite “prever”. Por exemplo, na digitação de um texto no telemóvel, atendendo ao número de vezes que usamos determinada palavra, o aparelho antecipa aquela que queremos escrever.

O movimento do pensamento reflete o movimento das coisas, mas não é o movimento do pensamento que introduz o movimento nas coisas, como defende o idealismo.

«O movimento do pensamento é apenas o reflexo do movimento real, transportado e transposto para o cérebro do homem» diz Marx (livro I de O Capital). «A dialética das coisas produz a dialética das ideias» (Lénine, Cadernos filosóficos).

O conhecimento do mundo

Em terceiro lugar, para o materialismo marxista, o mundo é conhecível.

Há filosofias idealistas que reconhecem a existência da matéria fora da consciência dos homens, mas afirmam que nunca poderemos conhecer o real uma vez que percecionamos apenas as suas imagens, isto é, não conhecemos senão as aparências das coisas. Kant, por exemplo, idealista, fala da “coisa em si”, não cognoscível. Assim, o papel da ciência consistiria em colocar uma ordem lógica nos fenómenos, em obter uma interpretação deles. Só o pensamento poderia organizar essa informação. Por isso, as leis da ciência seriam as leis do espírito humano.

Para o marxismo, o mundo é conhecível. Isto é, existe uma realidade objetiva que o homem pode conhecer. Conhecendo as leis da natureza, pode aplicá-las em seu favor. Nesse sentido, só a prática é o critério da verdade. Se algo funciona do modo que tínhamos previsto é porque existe uma verdade objetiva e estávamos certos. Pelo contrário, se algo falha é porque ou a perceção ou o raciocínio, a generalização, estavam errados. E o erro é corrigível.

Dizem Marx e Engels (Études Philosofiques Éd. Sociales, Paris, 1951)): «O problema de saber se o pensamento humano pode atingir a verdade objetiva não é uma questão teórica, mas uma questão prática. É na prática que é preciso que o homem prove a verdade, isto é a realidade e o poder… do seu pensamento»[sublinhados nossos].

A sociedade, as relações sociais, têm também, portanto, uma natureza material, objetiva, independente da consciência dos homens e a consciência dos homens é determinada pelas relações que eles estabelecem entre si na produção social das suas condições de vida e modifica-se com o grau histórico do desenvolvimento das forças produtivas. À aplicação do materialismo dialético à análise dessas relações em movimento dá-se o nome de materialismo histórico.

Materialismo histórico

A consciência dos homens relativamente à sociedade de que são membros é condicionada pela realidade material. Numa sociedade de classes, o pensamento dominante é o pensamento da classe dominante, mas cada classe ou camada reflete também o seu próprio ponto de vista a partir dos seus interesses de classe. A burguesia defende os seus, a pequena-burguesia ou o proletariado também o fazem. A transformação das ideias tem uma base material que reflete o movimento social. Num momento revolucionário existem ideias revolucionárias, uma teoria revolucionária na classe revolucionária, como na revolução francesa ou na revolução proletária.

«O homem na sua realidade é um conjunto das relações sociais» Marx, Teses sobre Ludwig Feuerbach (6ª).

«Na produção social da sua existência os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a determinado grau de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais», Marx e Engels em Estudos filosóficos.

Com o marxismo e o materialismo dialético, rigorosamente científico porque parte da realidade e da observação das leis do movimento real, a humanidade deixou de ser um sujeito passivo ao sabor de leis do movimento social que não determinava, de que era objeto inconsciente, para dispor de uma conceção científica que apreende essas leis e, por consequência, passou a ser capaz de utilizá-las, de ser um sujeito ativo e consciente da história. Foi possível, pois, “saber como se faz” a revolução socialista.

O problema da verdade

Para o materialismo a verdade é absoluta e relativa. É absoluta quando está em conformidade com a realidade em si mesma e é relativa porque se relaciona com todos os graus da verdade. Efetivamente, o conhecimento é gradual, natural e progressivo. Por exemplo, cada vez se tem mais conhecimento sobre o cancro, as terapêuticas são aplicadas em função desse conhecimento. Cada terapêutica vai sendo cada vez mais eficaz porque está cada vez mais aproximada das leis biológicas que regem a doença. A realidade da doença é cognoscível, portanto. Porém, está-se longe de conseguir tratamentos eficazes em todos os casos na medida em que não se alcançou ainda a compreensão da doença na sua totalidade. No processo, há tratamentos que são abandonados e substituídos por outros mais avançados. O tratamento anterior estava errado? Não, era um conhecimento relativo, uma verdade relativa.

O conhecimento parte da ignorância e vai-se tornando cada vez mais adequado e preciso.

O universo é infinito, logo o conhecimento também o é.

«Do ponto de vista […] do marxismo , os limites de aproximação dos nossos conhecimentos da verdade objetiva absoluta são historicamente relativos, mas a existência mesma dessa verdade não é contestável, como não é contestável que nos estamos aproximando dela. Os contornos do quadro são historicamente relativos, mas não é contestável que esse quadro represente um modelo existente objetivamente», diz Lénine em Materialismo e empiriocriticismo.

O conhecimento é um processo complexo pelo qual, no cérebro humano, se consitui o reflexo cada vez mais exato da realidade. Nesse processo existem dois graus qualitativamente distintos: o grau sensível e o grau racional, como já foi dito. Podemos designá-los de outra forma: teoria e prática. O conhecimento resulta da relação dialética entre os dois, em que a prática é sempre o ponto de partida e é também o critério de verdade.

No plano do socialismo científico, da luta revolucionária, que opera com as leis sociais do materialismo histórico, afirmou Stáline, em Princípios do leninismo: «Evidentemente a teoria fica sem objeto se não se liga à prática revolucionária; da mesma forma, a prática torna-se cega se o seu caminho não for iluminado pela teoria revolucionária».

março2020