Os Comunistas e os Intelectuais

Os Comunistas e os Intelectuais [Debate]

1- A necessidade de criticar uma concepção corrente de “intelectual”, aparentemente marcada pelo lugar-comum segundo o qual o intelectual moderno nasceu com o “J’Accuse” de Zola, e se constitui como “consciência moral”, porta-voz da “indignação face ao poder”. Na sociedade dividida em classes antagónicas (e não apenas na sociedade capitalista), uma parte significativa da intelectualidade é instrumental aos mecanismos de dominação de classe.

2- No pensamento marxista, a reflexão de Gramsci é nesse aspecto fundamental. Mas a questão da intelectualidade é muito amplamente reflectida em várias etapas do desenvolvimento do movimento comunista. Desde logo porque a teoria marxista é, antes de mais e desde o início, trabalho de intelectuais. É ela própria herdeira e incorpora elementos de diferentes correntes de pensamento anteriores (Lénine, “As 3 fontes”: a filosofia alemã, a economia política inglesa, o socialismo francês).

3- Gramsci reflecte sobre a “formação dos intelectuais”, elabora o entendimento do “intelectual orgânico”, que “emerge do terreno das exigências de uma função necessária no campo da produção económica”: “o empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, etc”. Mas, do mesmo modo, também “o operário institui o organizador sindical, o revolucionário profissional, e também os organizadores de uma nova cultura”. Os intelectuais orgânicos do proletariado correspondem a “exigências” inteiramente diversas das que geram os intelectuais orgânicos da burguesia.

4- Estas categorias não esgotam, evidentemente, a questão. Para os marxistas, o entendimento da “autonomia relativa” do trabalho intelectual é igualmente central. O trabalho intelectual, qualquer que seja a esfera em que opere, contêm necessariamente uma componente crítica e uma inserção na realidade material que em parte se subtrai às diferentes condicionantes (sociais, ideológicas, económicas) que predominam no momento histórico. Mais ainda: essa autonomia tem forte expressão no próprio processo criativo. São numerosos, sobretudo no movimento das artes e da literatura, os casos em que o conteúdo concreto do objecto criado ou da teoria formulada surgem até em contradição com convicções políticas e ideológicas do seu próprio criador.

5- A relação entre intelectuais e o comunismo evolui segundo a evolução histórica do movimento revolucionário. Durante o séc. XIX importantes figuras, sobretudo do mundo das artes, aderem às ideias do socialismo (mas não necessariamente do marxismo) e da revolução. Mais importante ainda é, sobretudo na parte final do século, a importância atribuída ao papel dos intelectuais na formação da “consciência política de classe” dos operários, consciência que não pode senão surgir “do exterior”, e não apenas da “luta económica entre operários e patrões”.

6- Lénine, que o escreve, assumiu-se sempre como “um publicista”. No mesmo texto, cita Kautsky: “o socialismo e a luta de classes surgem um ao lado do outro e não derivam um do outro; surgem de premissas diferentes. A consciência socialista moderna não pode surgir senão na base de profundos conhecimentos científicos.” É tendo essa consciência que o movimento revolucionário cresce na base do aprofundamento do conhecimento científico da natureza, das características, das contradições e vulnerabilidades da sociedade que combate.

7- A Revolução de Outubro abre novas perspectivas à adesão de intelectuais. Antes de mais, pelo impacto mundial do triunfo do proletariado, triunfo da ideologia proletária, que “lhe fora trazida de fora”. Para muitos, o triunfo revolucionário é o triunfo do pensamento progressista, que encontra finalmente o protagonista histórico capaz de converter ideias progressistas em força material e num novo poder.

8- Depois, a revolução de Outubro coincide com uma circunstância histórica em que, sobretudo no campo das artes, se prestigia e opera a concepção de “vanguarda”, em muitos casos reclamando-se de “anti-burguesa”, porque visa a ruptura com a tradição. As vanguardas artísticas vão durante décadas viver na proximidade da ideia de revolução.

9- A revolução de Outubro e o posterior campo socialista trazem igualmente outros papéis para intelectuais e quadros técnicos. Tarefas técnicas na consolidação do novo Estado, e igualmente um papel na sua sabotagem deliberada. A intelectualidade passa a ser compreendida como uma força instrumental no combate político, precisamente através da acção nas suas áreas específicas de especialidade – culturais, artísticas, científicas ou técnicas.

10- É nesses termos que melhor se compreende a “conquista ideológica dos intelectuais tradicionais”, na formulação de Gramsci. Tarefa que tanto o movimento revolucionário como a grande burguesia se colocam. É o que se passa tanto com a integração de intelectuais nas fileiras dos partidos comunistas, a sua participação nos movimentos pela paz e na resistência antifascista, como com o prolongado investimento do imperialismo no sentido de os afastar, não apenas por razões de classe, mas pela geração da ideia de uma oposição entre a liberdade de criação e de investigação e a causa da revolução. Ou seja, de instrumentalizar de forma reaccionária uma certa concepção da “autonomia relativa” já mencionada.

11- Ainda nos anos 30 do séc. XX um dos principais ideólogos do neoliberalismo, Hayek, afirma a necessidade de gerar “um novo tipo de intelectual” que divulgue a sua causa. Alguém que “não necessita de possuir um conhecimento especial acerca de nada em particular”, um “caixeiro viajante de ideias em segunda mão” com uma larga presença nos media. A corrente neoliberal é de facto a mãe dos intelectuais “tudólogos” que enxameiam os media. De certa forma, o “publicista” mencionado por Lénine, com um papel que é hoje central na luta das ideias. E que constitui, mais do que um grupo, uma casta entre os intelectuais.

12- Ao longo do séc. XX, as profissões intelectuais assumiram uma dimensão de massa. Na sua grande maioria, são hoje assalariados, o que gera alguns equívocos no que diz respeito à sua “proletarização”. Nos anos 30, quando existiu uma forte aproximação de parte da intelectualidade ao movimento antifascista, Benjamin afirmava que “a proletarização do intelectual quase nunca faz um proletário”, explicando que a adesão do intelectual apenas se faria pela abdicação do meio de produção que a burguesia lhe dera, “sob a forma de cultura”. O intelectual revolucionário “trai a sua classe”, diz Aragon.

13- Desde então, a questão tem de se colocar noutros termos. A evolução do capitalismo – com a inexorável mercantilização e instrumentalização de todas as esferas da actividade humana – gerou um profundo antagonismo entre a liberdade de criação e de investigação, entre as necessidades humanas de progresso e de desenvolvimento integral e as condições existentes.

14- A causa da emancipação do trabalho humano estende-se hoje a toda a actividade intelectual. Todavia, tal como a “consciência política de classe do proletariado” lhe chegou vinda do exterior, também a necessária consciência política entre a intelectualidade (não “de classe”, porque se trata de uma camada social marcadamente heterogénea) terá de lhe chegar do exterior. Não será a sua “proletarização” que a produzirá.