Demarcação de Marx do pensamento socialista dominante

 DOCUMENTOS

 Na década de 1840, os diferentes grupos revolucionários parisienses encontravam-se fortemente influenciados pelas doutrinas de Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), especialmente por aquelas que o pensador havia desenvolvido na sua obra Filosofia da miséria (1845).

Contrapondo uma crítica severa a esta obra proudhoniana, Marx publica Miséria da Filosofia, em 1847, obra fundamental, quer pela demarcação clara que então se opera em Marx em relação ao pensamento socialista dominante das primeiras três décadas do século XIX, quer pelo aprofundamento ou surgimento de categorias que, mais tarde amadurecidas em O Capital, constituirão a base conceptual do materialismo histórico e dialético.

No conjunto da obra de Marx, Miséria da Filosofia constitui um esboço de crítica ao modo de produção capitalista (a qual permite a Marx avançar na sua teoria social), assim como um primeiro esboço programático revolucionário: “A condição de libertação da classe laboriosa é a abolição de toda classe, assim como a condição de libertação do terceiro estado, da ordem burguesa, foi a abolição de todos os estados” (MARX, Karl [1847], Miséria da Filosofia: resposta à Filosofia da Miséria do sr. Proudhon, São Paulo – Expressão Popular, 2009, p.191).

Economicamente, as primeiras quatro décadas do século XIX são marcadas pela maturação do modo de produção capitalista, pelo que o desenvolvimento das forças produtivas já é predominantemente dominado pelas forças do capital. Agudiza-se o antagonismo entre, por um lado, a produção socializada e, por outro, a crescente apropriação privada dos meios de produção, com a consequente pauperização da grande maioria dos trabalhadores, enquanto as formas políticas de Estado existentes revelam os seus limites (seja na República democrática francesa, na monarquia constitucional britânica ou nas ditaduras autocráticas da Alemanha, de Itália ou do Império Austro-Húngaro).

Juntamente com a maturação do modo de produção capitalista, amadurece, igualmente, a luta do proletariado, a qual se materializou através da constituição de Ligas Operárias (que, mais tarde, se transformariam em Ligas Comunistas). Apesar da expressão teórica deste amadurecimento se manifestar no pensamento socialista utópico, este vai, gradualmente, sendo superado pelo socialismo científico.

É neste contexto que Marx publica Miséria da Filosofia.

Proudhon era o socialista mais reputado do seu tempo. Tornar-se-ia, sobretudo após as diferentes revoluções europeias de 1848, na principal referência do movimento anarquista. Em 1840, na obra O que é a propriedade? (Primeira memória) (a qual, aliás, tem então uma grande influência no pensamento de Marx), Proudhon considera que a propriedade é um roubo e que o proprietário é um parasita ou um ladrão:

Certo autor ensina que a propriedade é um direito civil, nascido da ocupação e sancionado pela lei; um outro sustenta que é um direito natural, tendo a sua origem no trabalho: e estas doutrinas, ainda que pareçam opostas, são encorajadas e aplaudidas. Eu pretendo que nem o trabalho, nem a ocupação, nem a lei, podem criar a propriedade; que ela é um efeito sem causa: é repreensível pensar assim?

Quanta objeção se levanta!

– A propriedade é o roubo! Eis o clarim de 93! Eis o grande barulho das revoluções!… (PROUDHON, Pierre-Joseph [1840], O que é a propriedade, Lisboa – Editorial Estampa, 1875, p. 11).

Em 1841, em O que é a propriedade? Segunda Memória sobre a propriedade, Proudhon ataca os teóricos do liberalismo clássico (John Locke, Thomas Hobbes), fazendo uma distinção entre igualdade de condições e igualdade de direitos. Considera, deste modo, que o capitalismo permitira a igualdade de direitos, mas não a igualdade de condições, defendendo a necessidade de uma Revolução que crie um novo Estado.

Em 1843, em Da criação da ordem na humanidade ou Princípios de organização política, Proudhon faz uma releitura de toda a filosofia, de Platão a Hegel, concluindo por um sistema de contradições que designa de dialética serial. Em 1845, publica Filosofia da Miséria ou o sistema das contradições económicas, aplicando o seu sistema de contradições à economia capitalista. Proudhon pretendia expor as principais contradições que observava nos pressupostos e práticas fundamentais do sistema capitalista, para então os contrastar com as aspirações socialistas; de seguida, através da aplicação do seu método, pretendia indicar a forma de superar essas mesmas contradições, defendendo que a existência de uma contradição já constituía, em si mesma, o meio para a sua resolução.

Há que assinalar que a dialética proudhoniana se baseia em antinomias excludentes, pelo que cada categoria teria ora um lado positivo, ora um lado negativo:

Antes do sr. Proudhon, o génio social viu somente os elementos antagónicos, e não a fórmula sintética (…) Apenas realizando sobre a terra essas verdades insuficientes, essas categorias incompletas, essas noções contraditórias, as relações económicas são, pois, em si mesmas, contraditórias e apresentam os dois lados, um bom, outro mau (MARX, Karl [1847], Miséria da Filosofia: resposta à Filosofia da Miséria do sr. Proudhon, São Paulo – Expressão Popular, 2009, p. 133).

Assim, por exemplo, a divisão social do trabalho ou a propriedade privada teriam quer um lado positivo, quer um lado negativo, sendo que a solução estaria na recuperação do lado positivo de cada uma das categorias. Proudhon procurava, portanto, conciliar as contradições, buscando um equilíbrio através da superação das antinomias excludentes:

Mas, enquanto que na natureza a síntese dos contrários é contemporânea à sua oposição, na sociedade os elementos antitéticos parecem produzir-se a longos intervalos de tempo e resolverem-se apenas depois de uma longa e tumultuada agitação. Assim, não há exemplo, sequer podemos imaginar, um vale sem as colinas, esquerda sem direita, polo norte sem o polo sul ou de um bastão que tivesse uma única extremidade ou duas extremidades sem ter o meio, etc. (…) Na sociedade, ao contrário, bem como no espírito, a ideia deve atingir em um único salto a sua plenitude, de modo que um tipo de abismo separa por assim dizer as duas posições antinómicas e que mesmo sendo estas por fim reconhecidas, não se percebe ainda por isso qual será́ a síntese. É preciso que os conceitos primitivos sejam, por assim dizer, fecundados por controvérsias ardentes e lutas apaixonadas (…) Se eu demonstrar, portanto, que a economia politica, com todas as suas hipóteses contraditórias e suas conclusões equivocas, nada mais é que a organização do privilégio e da miséria, terei provado por isso mesmo que ela contém implicitamente a promessa da organização do trabalho e da igualdade, pois, como já́ se disse, toda a contradição sistemática é o anúncio de uma composição; mais ainda, eu terei lançado as bases desta composição. Desta forma, enfim, expor o sistema das contradições económicas é lançar os fundamentos da associação universal (PROUDHON, Pierre-Joseph [1845], Sistema das Contradições económicas ou Filosofia da Miséria, São Paulo – Icone, 2003, pp. 177-179).

Porém, na sua obra Miséria da Filosofia, Marx afirma a impossibilidade real desta harmonia, considerando que a teoria proudhoniana é uma mera teoria empobrecida da sociedade capitalista, incapaz de ler as leis sociais. Considera, desta forma, que a teoria de Proudhon não somente não é revolucionária, como é, de facto, conservadora, já que (para além, segundo Marx, de aplicar teses burguesas de outros autores) busca no passado uma harmonia hoje inexistente:

Se a posteridade algum dia intervier (…), talvez diga que o sr. Proudhon, temendo chocar a anglofobia dos seus leitores, preferiu fazer-se o editor responsável das ideias de Ricardo. De qualquer maneira, à posteridade, parecerá muito ingênuo que o sr. Proudhon exiba como “teoria revolucionária do futuro” o que Ricardo expôs cientificamente como a teoria da sociedade atual, da sociedade burguesa, bem como o fato de o sr. Proudhon considerar como a solução da antinomia entre a utilidade e o valor de troca aquilo que Ricardo e a sua escola (…) apresentaram como a fórmula científica de um único termo de antinomia, do valor de troca (MARX, Karl [1847], Miséria da Filosofia: resposta à Filosofia da Miséria do sr. Proudhon, São Paulo – Expressão Popular, 2009, p. 59).

Marx vai propor, como já ressaltámos nos textos anteriores, a diferenciação das categorias inteletivas das categorias ontológicas, considerando que as primeiras revelam as contradições reais do movimento real. As construções históricas são, neste sentido, transitórias. Marx conclui que existem antagonismos de classe, afirmando que o sujeito político, concreto, que poderá realizar a superação da contradição central da sociedade capitalista tem de ser o proletariado. O proletariado deixa, deste modo, de ser a classe sofredora proudhoniana, transformando-se numa classe em si: existe como classe consolidada que, na realidade socioeconómica do capital, se opõe à burguesia. Quando o proletariado assume a consciência desta oposição de classe, é, então, uma classe para si, uma vez que, a partir de então, passa a assumir a consciência da classe à qual pertence:

As condições económicas, inicialmente, transformaram a massa do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para essa massa uma situação comum, interesses comuns. Essa massa, pois, é já, face ao capital, uma classe, mas ainda não o é para si mesma. Na luta (…) essa massa se reúne, se constitui em classe para si mesma. Os interesses que defende se tornam interesses de classe. Mas a luta entre classes é uma luta política (MARX, Karl [1847], Miséria da Filosofia: resposta à Filosofia da Miséria do sr. Proudhon, São Paulo – Expressão Popular, 2009, p. 190).

Marx reconhece, desta forma, a autoemancipação do proletariado, a qual se realiza pela experiência concreta da luta de classes, uma vez que a sua consciência se efetiva através da praxis. Neste sentido, a teoria revolucionária emana do movimento concreto das massas, sendo o resultado da organização política concreta do proletariado, e não de uma qualquer espontaneidade.

Neste momento da produção de Marx, estes avanços no seu pensamento são, contudo, paralelos a alguns limites que o próprio superará mais tarde. Assim, por exemplo, o valor das mercadorias ainda é sinónimo do seu preço, não se distinguindo, por enquanto, a diferença entre trabalho necessário (trabalho concreto, útil, que produz valores de uso) e trabalho socialmente necessário (trabalho abstrato, que abstrai formas concretas presentes nas mercadorias, ou seja, trabalho médio socialmente necessário à produção de mercadorias) – distinção fundamental que permitiria a Marx chegar ao conceito de mais-valia (MV): “Na agricultura, ao contrário, o que regula o preço de todos os produtos da mesma espécie é o preço do produto obtido com a maior quantidade de trabalho(MARX, Karl [1847], Miséria da Filosofia: resposta à Filosofia da Miséria do sr. Proudhon, São Paulo – Expressão Popular, 2009, p. 174). Marx tampouco conhece, por enquanto, a mercadoria força de trabalho (que inclui no seu valor o tempo médio socialmente necessário), que os capitalistas compram aos trabalhadores.

E seria, precisamente, a transformação da categoria trabalho que permitiria conformar, num estádio subsequente, uma nova etapa da obra quer de Marx, quer de Engels.

novembro 2019